Redação: diferenças entre FUVEST e ENEM
Redação: entre a formação humana e o
glamour.
No vestibular mais glamouroso do país - Medicina
Pinheiros ou Faculdade de Medicina da USP - a nota de Português e Redação da
primeira lista de aprovados é em média, nos últimos 10 anos, 6,8. Enquanto, nos
dois dias seguintes de prova, a nota sobe para 8,2 e 8,7, respectivamente.
Deflagra-se que a Redação é mesmo a boa vilã dos vestibulandos da FMUSP e não
por acaso é um dos melhores métodos de avaliação da maturidade intelectual dos
candidatos.
No ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio – os números são mais esclarecedores do potencial de seleção da redação. Apenas 250 alunos entre mais de 5 milhões de textos tiraram nota máxima no Exame Nacional em 2014 (menos de 0,00005% das redações/ um a cada 20 mil candidatos), e para complementar, se fizermos a mesma análise na FUVEST, menos de 100 redações tiraram nota dez entre um pouco mais de 30 mil candidatos na segunda fase (ou seja, menos de 0,0033% das redações/ um a cada 300 candidatos). São números que mostram uma verdade factual, para usar uma expressão da pensadora judia Hannah Arendt. Por isso, não podemos negá-los, devemos encará-los com consistência e análise crítica. O que, afinal, eles dizem sobre a formação humana para as faculdades públicas?
Chegamos ao primeiro ponto crucial:
as notas são baixas em redação, ainda mais por que nenhum outro curso da FUVEST
tem notas tão altas quanto a Medicina. A média do Direito é 6,0, da Engenharia na Poli, 5,5 e da Administração 4,5. Poderíamos dizer que nossos
estudantes não sabem escrever por que não leem, ou não exercitam a escrita. Mas
isto seria o argumento clichê, embora não deixa de ser, em parte, verdade. Por outro viés,
valeria notar que o método, a grade de correção, os temas e a formação do aluno
levam muitos a terem notas baixas. Logo, é preciso fazer uma observação do porquê
da redação e da formação humana que nossa sociedade está pretensamente
conduzindo nossos vestibulandos.
A Chave da Faculdade Pública e o
Porquê da Redação
Se você quer a chave para a
universidade pública e de qualidade, valeria notar a tendência dos temas de
redação dos grandes vestibulares que cobram, prioritariamente, do vestibulando:
cidadania, visão de mundo, visão histórica, econômica e sociológica, noção de
direitos e ética. A chave da universidade é Marxista! (Não, isto não quer dizer
que a FUVEST ou o ENEM são de esquerda, pelo contrário. Há algo muito sutil
nesta afirmação, pois Karl Marx era um pensador alemão que colocou em questão o
homem como sujeito histórico e seus valores em sociedade, sejam valores de
consumo, de trabalho ou mesmo de lucro, e isto é muito mais abrangente que uma
simples polarização entre direita e esquerda. Não caia nesta falácia dos
discursos clichês e procure também estudar Marx, que mal há nisso? Vale a leitura e depois as críticas. Pode-se começar pelo “O Caráter do Fetichismos da
Mercadoria e seu Segredo” lá no “O Capital”).
Embora valha, aqui, fazer um pequeno parágrafo de ressalva: Marxismo significa orientação filosófica voltada pra construção sócio-histórica (e, portanto, dialética) dos fenômenos observados no presente. Marxismo significa radicalidade do olhar sobre o modo de produção do valor e da desigualdade entre os homens. Só para deixar claro a importância de se ler Marx hodiernamente.
Diferenças entre FUVEST e ENEM
Note o ENEM, analisemos os temas (Lei Seca e Propaganda Infantil, foram os dois últimos temas), olhemos a FUVEST (Camarotização; as Declarações antiéticas do ministro japonês Taro Aso; Consumismo; e Participação Política foram os quatro últimos temas da prova da USP), ou mesmo, a UNIFESP (Financiamento Privado de Campanhas Políticas; Espionagem; Comissão da Verdade; e a Polêmica do Livro do MEC), ao final de uma observação mais detalhada iremos notar que o ENEM é o único que cobra do candidato uma proposição para os problemas atuais e futuros do país. Definitivamente o ENEM, em redação, é uma prova inteligente! Mas a FUVEST é bem mais difícil pelo nível da correção.
Há diferenças entre uma prova e outra, que são imprescindíveis saber: as grades de correção são totalmente diferentes. Contudo, apresentam algo em comum: cobram autoria e maturidade acima da média dos jovens. A grade de correção da FUVEST é muito mais sofisticada que a do ENEM, ao cobrar a articulação do conteúdo (40% da nota) e linguagem escrita (30%) e os outros 30% são pela estrutura.
As diferenças estão na escolha da
grade, não há falha em nenhuma delas, apenas uma questão de foco. Por exemplo,
no ENEM ficou conhecido o caso, em 2012, da redação com receita de “miojo”
(macarrão instantâneo) no penúltimo parágrafo de uma redação que tirou nota
560; porém a grade permitia e ainda permite que os itens ou competências, como
linguagem e tema, sejam avaliados separadamente. O que dá nota, ainda que
irrisória, a um texto com um parágrafo inteiro fora do tema, mas com coesão
entre as outras partes e com boa linguagem. Contudo, o ENEM não permite a
qualquer candidato ferir os Direitos Humanos. Acha mais grave isto do que
aquilo; mais grave ser antiético do que encontrar uma brincadeira de um
candidato fanfarrão. O foco do ENEM é a formação cidadã.
Já a FUVEST cobra uma
interdependência entre as partes do texto, embora não deixa claro em seu manual
e nem diz se elimina os candidatos antiéticos. Mas é possível conhecer casos,
por exemplo, de um aluno calouro da FMUSP que tem fotos, nas redes sociais, ao
lado de Hitler no museu de cera fazendo clara apologia ao Füher; ou mesmo, o
caso que ainda está sendo investigado, do aluno do sexto ano que violentou três
mulheres nas dependências do Campus, além de já ter cometido homicídio quando
era policial militar – a FMUSP suspendeu o aluno por 180 dias em fevereiro
passado e o proibiu, por enquanto, de colar grau. Por outro lado, se a prova do
vestibular não consegue filtrar os discursos antiéticos, casos como do aluno
Felipe Scalisa (A Face oculta da Medicina, publicado na FOLHA, em 13/11/2014 - link para o texto na Folha)
mostram que na Universidade o debate de humanização está em aberto e sendo feito, apesar de Scalisa
estar com o curso trancado por seguidas ameaças dos próprios colegas de curso. Há aí algo que vem se tornando
comum em um país polarizado e nivelado por baixo índice de ética, em que o
status vence a vocação, ou o glamour vence os direitos humanos, anda e
esquecendo o humano do homem e o salutar convívio com as diferenças. O foco da FUVEST, parece, ser o filtro dos melhores alunos das escolas que melhor preparam para o vestibular, ou seja, acaba sendo um filtro sócio-econômico.As perguntas aparecem: qual o melhor
exame para selecionar seres humanos competentes para estudar nas universidades
públicas? O vestibular escolhe os melhores ou os mais bem preparados? Qual a
função da redação no vestibular?
A redação é, definitivamente, o
melhor filtro e o melhor exame para avaliar a autonomia (o pensar autônomo e radical) dos candidatos, se
acompanhada de outras matérias (biologia, física, matemática, história, etc) em questões testes e discursivas. Para melhorar
o processo, cabe também cogitar, como em países como Canadá ou EUA, a análise
curricular do aluno ao longo de sua formação e uma entrevista. Embora, em meio
as técnicas e métodos, a redação é mais fino mecanismo e mais objetivo para se fazer uma
tomografia nuclear da formação subjetiva do indivíduo, afinal como diria Hannah
Arendt em uma sentença bem contundente, que nos serve de parâmetro de avaliação
da educação, da civilidade e da humanização em tempos de muita informação:
“Podemos nos informar a vida inteira, sem nunca nos educar”. A redação consegue filtrar quem apenas se informa daquele que se educa.
Chegamos ao ponto. É a redação,
portanto, o melhor método de avaliação do pensamento crítico, da maturidade
intelectual do aluno de ensino médio, pois consegue condensar os critérios de
clareza, coesão, argumentação, leitura de mundo, de realidades e de
culturas e ainda é o espelho da autonomia do vestibulando, ou seja, é a redação
que avalia a autonomia do sujeito, enquanto potencial cidadão, enquanto ser com
noção histórica.
Autonomia e cidadania não são ideias
de esquerda, mas sim de teóricos de direita como Adam Smith e os papas das
Constituições cidadãs pelo mundo, que entendem que o sujeito se torna cidadão
por aquilo que consome no liberalismo ou no nosso neoliberalismo (contrariando
a tese da simplória polarização entre esquerda e direita do texto publicado no
caderno Ilustríssima da FOLHA, no dia 12/07/2015, com o título “Nota Máxima
para o Clichê Ideológico” - Link para o raso texto de Joel da Fonseca). Valeria, por exemplo, ao autor Joel Pinheiro
da Fonseca ler com mais cuidado, como eu fiz, as 250 redações do ENEM do ano
passado, que tiraram nota máxima, e verificar que alunos que foram contra
medidas governamentais ou mesmo contra o governo do PT ou que saíram do clichê
ideológico do anticonsumo ensinado pelos professores de humanas, como foi dito
no artigo. Nota-se, portanto, que os alunos que tiraram notas altas foi
justamente por terem autonomia intelectual e não por serem de esquerda ou
direita. Há formas muito sábias encontradas pelos alunos de lidar com o clichê
e pode-se encontrar na sutileza de cada texto a marca de autoria de cada um.
Redação é critério de Classe,
Formação e Faculdade
A redação em alguns vestibulares não
é só critério de avaliação, entretanto é o mais puro critério de classe. Por
exemplo, um jovem que escolhe medicina, não a escolhe apenas pela manutenção de
ou aquisição de status social, nem a escolhe apenas por vocação, mas fazer
medicina hoje no país parte de uma escolhe privilegiada de classe. Uma escolha
quase que exclusiva de apenas uma classe social.
A raridade das notas máximas no ENEM
e FUVEST demonstra dois fatores: primeiro, a redação é a grande vilã do pensamento
clichê, talvez pela rigidez positiva das bancas avaliadoras; segundo, apresenta-se
a deficiência do pensamento autônomo e crítico dos estudantes. Pensando nisso,
muitas escolas montaram o modelo Smart (com professores
fazendo plantão de dúvidas aos alunos. Claro, tudo isto, a um alto custo
financeiro que privilegia um certo bolsão de consumidores).
Vale ressaltar que, diferentemente de
um professor, formado em Letras, História, Pedagogia, na maioria dos casos, em
que a profissão é um encontro de vida (no Brasil, aparentemente, esse encontro
se dá entre a necessidade de sobreviver e a de conhecimento), ser médico
requer dívidas e dividendos desde os primeiros anos de escola. Pode ser a
profissão mais rentável hoje no Brasil, mas tem seus vastos custos. E um deles
é ter um pensamento crítico acima de 6,5 na redação da FUVEST e 900 pontos no
ENEM. Mas, para isso, é preciso muito diálogo, escrita, leitura, debate e uma
sociedade atenta ao que uma redação pede do aluno: autoria e olhos atentos à realidade
em transformação que o cerca e o cercará a longo prazo.
Fabrício César de Oliveira, 36 anos, é Doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela UFSCar. Foi Coordenador de Redação do Sistema Poliedro, de 2011 a 2015, viu e implementou um sistema de correção que possibilitou um tratamento mais humanizado na correção de Redação e ajudou a aumentar os índices da provação do Sistema de Ensino Poliedro, que em 2015 se tornou o que mais aprova em Medicina no país. Hoje, é professor do IFSP, campus São Paulo e dedica-se, exclusivamente, como desafio candente, ao Ensino Público.
email: prof.fabricio_oliveira@yahoo.com.br
Bom dia, Dr. Fabrício!
ResponderExcluirGostaria de saber mais sobre o seu sistema de correção de redações. Há alguma publicação ou periódico versando sobre o método?
Desde já agradeço.
Tarso Zagato
Tive que selecionar o texto para conseguir ler, pois a cor de fundo e as letras estão brancas.
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