Poesia expressa na era da pressa



Poesia expressa na era da pressa

Se quase não temos mais tempo para ler romances no mundo da
pressa, da TV, do cinema e dos videogames, então é tempo de ler poesia?
Viveríamos hoje a vingança da poesia, o seu dia D, o momento propício
para seu retorno a um mundo tão violentamente prosaico? A questão foi
lançada pela ensaísta americana Camille Paglia, numa animada entrevista
publicada pelo caderno Mais!, da Folha de São Paulo, e a revista Cláudia
me repassa inesperadamente a bola, perguntando: a poesia ganha uma
importância nova na era da internet? Ela tem mais chance num mundo
como o nosso? De fato, de um ponto de vista puramente quantitativo, como
diz Camille, um romance consome dias ou semanas de nosso tempo,
exigindo uma atenção continuada, num mundo em que tudo em volta faz
com que nossa atenção se interrompa e se disperse em mil assuntos. Já um
poema pode ser lido em minutos, às vezes em segundos. O poema é uma
autêntica pílula literária, em cuja concentração Camille Paglia vê a
possibilidade de uma revitalização da literatura em nosso tempo.
Considero que exaltar a poesia é sempre bom, assim como apostar na
força dela: por que não? E o que a ensaísta americana está fazendo é, de
fato, mais uma aposta muito afirmativa no poder da poesia do que um
raciocínio automático e simplório que dissesse: como não temos tempo para
ler romances, leremos poemas!


A questão que ela está colocando, na verdade, é: precisamos
aprender – ou reaprender – hoje a ler poesia. Lembremos que no Brasil a

questão é ainda mais embaixo, porque lemos muito pouco, pouquíssimo,
seja poesia, seja prosa, e precisamos, portanto, aprender a ler, no sentido
mais amplo da palavra. Mas, dito isso, vamos voltar ao começo e retomar a
pergunta: de quanto tempo precisamos, de fato, para ler um poema? Quanto
tempo ele nos pede?


Aqui a resposta tem que ser parecida à daquele pintor que,
perguntado sobre quanto tempo levara para pintar um determinado quadro,
respondeu, cheio de razão: a vida inteira. Não nos enganemos, portanto,

sobre a rapidez da poesia: um poema pede que a gente dê a ele a nossa vida
inteira naquele instante. Em outras palavras, um poema exige pouco do

nosso tempo horizontal, cronológico e linear. Ele exige tudo do nosso
tempo vertical, aquele que vai bater lá no sem fundo da lembrança, na aura
sutil dos afetos, na dor e no espanto de existir, e na descoberta de que as
palavras, que nos parecem naturais, não param de dançar um jogo infinito.
O poema exige um tempo intenso, em outra dimensão – por isso ele não é
óbvio nem fácil, embora se entregue com súbita facilidade a quem se
entrega a ele e o descobre de repente.


Carlos Drummond de Andrade, o nosso poeta maior, declarou certa
vez, citando Rainer Maria Rilke (poeta austríaco) que “para escrever um só
verso é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas, conhecer os
animais, sentir como voam os pássaros e saber que movimento fazem as
flores ao se abrirem pela manhã; é preciso ter a lembrança de mulheres
sofrendo na hora do parto, de pessoas morrendo, de crianças doentes, de
diferentes noites de amor; e depois é preciso esquecer tudo isso, esperar que
tudo isso se incorpore ao nosso sangue, ao nosso olhar; que tudo isso fique
fazendo parte de nós”.


Isso que a poesia pede ao poeta, nas palavras de Drummond, pede
também da sensibilidade do leitor, a seu modo, no momento da leitura.

Fernando Pessoa diz que para se entenderem os símbolos poéticos são
necessárias, antes de mais nada, a intuição e a simpatia do leitor: é preciso
que o leitor vibre junto com o poema, dê força ao poema, seja cúmplice do
poema e adivinhe o poema. O poema é uma avenca, uma planta sensitiva,
que definha com um olhar torto. Mas também é uma fênix exuberante, que

renasce quando irrigada. Porque bebe daquilo que o leitor lhe oferece em
nudez interior, em despojamento de tudo que é o já sabido, em
desprendimento de conceitos e preconceitos.


Penso, por exemplo, num poema tão simples, de Manuel Bandeira,
como "A onda":



“A onda anda
aonde
anda a onda?
A onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda
a onda.


Um leitor prosaico e ressecado, incapaz de lembrar que ele mesmo é
um organismo todo feito de ondas – de ar, de fluidos, de energia, de
desejos, de impulsos da alma – dirá: mas que tremenda falta de assunto! Ele
não terá na verdade tempo algum de disponibilidade para essas poucas e

iluminadas palavras. Como diria Fernando Pessoa, o poema está morto para
ele, e ele, morto para o poema.



Mas o leitor poético que há em nós, e mesmo que sem qualquer
pretensão intelectual, reconhecerá de imediato as ondas do mar dançando na
música das palavras. Tomado de simpatia, e intuindo que aquela vibração

não lhe é estranha, embarca na onda e no jogo. E, consciente disso ou não,
sente que a onda anda numa pergunta em círculo, procurando um lugar que

não é nenhum lugar senão a própria onda. Que não há repouso senão no
movimento. Que a vida só se apóia no seu moto-perpétuo, perguntando-se
sobre seu destino e tendo como resposta a si mesma.



Em suma, a poesia, pela sua brevidade, pela sua rapidez, pela sua
leveza, parece participar daquele ritmo que Ítalo Calvino (escritor italiano)
queria para o presente milênio. Ao mesmo tempo, ela continua sendo a
estranha e mais que nunca a excluída desse mundo onde a publicidade
ocupou todos os espaços para dizer que a posse das mercadorias
permanentemente descartadas e o status conferido ao possuidor são a
solução da existência. Nesse sentido, a vontade de afirmar a poesia, como
faz Camille Paglia, não deixa de atritar, cheia de energia, com o mundo que
baniu dele a poesia, na prática e não há pouco tempo. No seu primeiro livro,
"Alguma Poesia", em 1930, Drummond já dizia: “Impossível escrever um
poema a essa altura da evolução da humanidade”. Mas terminava o mesmo
poema dizendo: “Desconfio que escrevi um poema”.

(WISNIK, José Miguel. A poesia expressa na era da pressa. São Paulo: Revista
Claúdia. Ed Abril, julho 2005, adaptado.)


Para fazer um soneto
Carlos Pena Filho


Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza,
Ponha tudo de lado e então comece.



O sobrevivente
Carlos Drummond de Andrade


Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)



SECCHIN, Antônio Carlos. Antologia temática da poesia brasileira. Rio de
Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2004.

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