Gesto Bruxo





"A busca por uma definição unívoca empobrece a linguagem de suas possibilidades."
(Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas)

Bruxo



Não há como dar conta da realidade apenas com dois olhos. Parece ser esta a maior lição das obras da Literatura Realista pelo mundo. O narrador realista deve ser em terceira pessoa, assim o é nas maiores obras-primas, como Primo Basílio, Ana Karênina, Madame Bouvary, A Letra Escarlate, pois a distância é crítica, o olhar de fora, em plano amplo, em foco narrativo onisciente é mais revelador do real da História que o olhar parcial e pessoal. Entretanto, a maior obra do Realismo Universal é de um brasileiro, escrito propositalmente em foco narrativo em primeira pessoa, vemos e lemos tudo com apenas dois olhos: os de Bento Santiago, o Bentinho, o Dom Casmurro, de Machado de Assis (o Bruxo do Cosme Velho). 

Joaquim Maria Machado de Assis era um leitor contumaz do romantismo no mundo e do realismo, era jornalista, contista, mulato, crítico ferrenho do positivismo, do cientificismo racionalista, dono da maior característica dos gênios: a ironia fina que busca a ética.

Em nenhum momento deflagrou-se contra o racismo, era um homem de sua época, sabia muito bem onde queria chegar; mas em todos os seus escritos mostrou que a burguesia fluminense era corrompida, podre e doente. Não lançou juízo de valor sobre a sociedade da época, "apenas" e acertadamente a descreveu. Ou seja, fez melhor, fez o mais ético, quis mostrar para os leitores de outros tempos que seu tempo era podre. 



Machado leitor de Nietzsche sabia o que era Niilismo, como proposta ética, e corroborava com parte do que o alemão dizia: "Minha filosofia é póstuma, só os que irão nascer serão capazes de entender a minha filosofia". O Bruxo do Cosme Velho sabia que fazer críticas diretas ao seu tempo trariam mais perdas para si que benefícios, sabia que sua Literatura era Póstuma, ficou na História como primeiro presidente da ABL.

Propositalmente os narradores de seus romances Realistas eram em Primeira Pessoa (Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas). Mas por quê? Por que Machado é gênio. Simples assim. Já teve contato com um gênio? Basta ler Machado de Assis e entender seu tempo, logo descobrirá sua genialidade. Entretanto há dois pontos que comprovam mais sua maestria:

1) Os romances realistas no mundo tinham como tema o Adultério. Como proposta de quebra de paradigma romântico nas novelas de costume em que no capítulo final o casamento significava o "Felizes para sempre". 
Escritores realistas era fortemente influenciados pela fotografia realista, pela pintura de Gustave Coubert, pelas ideias revolucionárias da luta de classes de Marx, pelo naturalismo de Emile Zola, Balzac. Machado não traz o Adultério como tema de seu romance Realista! Ele traz o adultério como cortina de fumaça para seu tema! Aí está a genialidade! 


Enquanto o mundo escrevia sobre adultério, era fascinado só por adultério, Machado escrevia sobre uma doença, uma PSICOPATOLOGIA, uma doença psicológica, o ciúmes. 


O tema de Dom Casmurro é o ciúmes cego de Bento Santiago! O que o motiva escrever o livro todo como forma de terapia. Após todos morrerem, a mulher que amou, o filho que teve, o amigo amado, a família da rua de Matacavalos. Todos mortos. Apenas o Casmurro, ciumento, vivo. 


Genial, não é? Ainda não se convenceu. Então vamos ao segundo ponto.

2) Ao colocar o narrador em primeira pessoa, Machado está nos dando uma grande lição de vida: nunca olhe o mundo apenas com os olhos que tem ou que te deram, mas olhe o mundo com os olhos do conhecimento, aqueles que estão sempre abertos ao diálogo, à escuta, à sanidade, ao Outro, às mudanças.

Pois se assim não o fizer corre-se o risco de viver-se uma vida só, mesquinha, medíocre, casmurra, cega, preconceituosa, racista, individualista, medrosa, temerária, insegura, besta.

“O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência. Por isso a grande arte é sempre difícil e sempre imprevista, não quer agradar e consolar – quer colocar problemas, renovar nossa percepção e o nosso modo de compreender as coisas”  (Umberto Eco)

Aí está a genialidade de Machado de Assis, sua obra é aberta. Como toda obra-prima deve ser aberta, diria Umberto Eco. A pergunta final que fica é: "Capitu traiu ou não Bentinho?"

Não dá para saber, pois o Narrador é o sujeito supostamente traído. Ele cego, ciumento, enxergará traição em tudo e obliterará as semelhanças físicas que tem com Escobar. Para os olhos viciados, no individualismo, em primeira pessoa, o Outro é sempre o INIMIGO.

Não dá para saber, pois Capitu não fora ouvida, não nos escreveu um romance. Machado não quis fazê-lo porque sua obra já está fechada em uma lição: ela é ética ao tocar e fazer o leitor se questionar sobre sua cegueira bentiniana.

Machado nos dá uma lição Ética. Como Bruxo que transcende seu tempo.

Ao final do livro, na penúltima e ante-derradeira frase: "Que a Terra lhes seja Leve", como se estivesse assumindo a culpa de nunca os ter perdoado em vida, o amigo que ele acha que traiu e a mulher que ele tem certeza, pelo ciúmes, que o traiu.

Assim, fica a lição máxima, não há como dar conta da imensa realidade apenas com dois olhos. Ainda mais se estes olhos forem viciados, preconceituosos, maus leitores, maus ouvintes, maus estudantes, maus expectadores, teremos uma sociedade que não enxerga que a Corrupção está em seu coração, em seu cerne, e contamina seus olhos.

Assim o é também com quem não vê que a Grande Mídia engana com apenas um lado da notícia, e faz uma sociedade inteira esquecer que o Outro lado existe, e que a junção dos dois lados leva a uma verdade, não mais inventada, mas a Pravda (do Russo), à verdade ética.

Machado de Assis é duplamente genial, pois é em um gesto bruxo, abre nossos olhos em perspectivas e ética.



Fabrício Oliveira, 37, doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem, Professor do IFSP, colaborador do Redação e Dialogia e do Roda de Cidadania.

 







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