POLARIZAÇÃO DA LINGUAGEM

POLARIZAÇÃO DA LINGUAGEM

Uma nova ordem bipolar: a tragédia de um discurso superficial

Nesse jogo de linguagem dos dois comportamentos lingüísticos, a popularidade do incorreto, esse discurso historicamente furioso que tem como fim combater o avanço das conquistas sociais, fortalece o ódio. Nos faz regredir ao fundamentalismo, impondo um estilo de vida sobre a diversidade, conseqüência da globalização, hoje criticada mais por uma perspectiva reacionária do que pelo ponto de vista do lugar em relação ao global

24 de agosto de 2017


A bipolaridade na política age como um imã. Exatamente como a Terra para a bússola. Em política, o magnetismo atrai os indivíduos que vagam em um mundo onde o excesso de opções suscita angústia. Quando nos distanciamos da política parlamentar e nos aventuramos pelo pensamento político-cultural dos cidadãos, nos deparamos com uma divisão (às vezes cômica, outras trágica) entre o politicamente correto e o politicamente incorreto.
O politicamente incorreto é fundamentalismo
Para o caso brasileiro (talvez de todo o continente americano), no entanto, essa separação assume um caráter ainda mais curioso. À esquerda (e uma parcela da direita mais ligada aos valores liberais) associa-se o politicamente correto e, à direita, o politicamente incorreto. Essa divisão supérflua do campo político é empobrecedora e interesseira, pois incitam a população ao ódio e a gritar palavrões e ofensas, enquanto que o parlamento promove manobras políticas para salvar o modelo capitalista em combustão.
Em sua obra de 1999, o sociólogo Zygmunt Bauman dizia que vivemos em uma época na qual a “crise” é o estado normal. Não há uma “crise de valores” justamente pelo fato de que não se pretende escolher um valor dominante, isto é, um valor que se sobreponha e rejeite os outros. Pós-modernos, optamos pela multiculturalidade, enquanto que o fundamentalista torna-se aquele que almeja dar predominância a um único valor. “Do ponto de vista fundamentalista, a pluralidade de valores, a diversidade de opções é em si mesma um mal”[1], disse o sociólogo polonês.
Neste sentido, Malafaia e Bolsonaro são fundamentalistas. Assim como os “Guias politicamente incorretos” vendidos por aí, que se colocam claramente contrários ao pensamento científico, adotando um valor predominante para julgar conjunturas e personagens históricos, escolhendo algo para execrar e influenciar o presente. Não passam de um culto descuidado ao anacronismo.
O pastor da Assembleia de Deus vocifera na Expo-cristã, realizada em São Paulo, para o governador Alckmin e para João Doria, prefeito da cidade: “Quem quiser fazer graça na eleição para o politicamente correto, para a ideologia de gênero, casamento gay, legalização das drogas e aborto, vai embora, segue seu caminho”.[2] Em outra situação, o presidenciável Jair Bolsonaro comenta o que pensa do tucano: “Agora eu tenho uma coisa importantíssima ao meu lado: eu tenho o povo ao meu lado e tenho propostas que, se o Doria for assumir em nome do PSDB, ele será impedido. Como a questão do desarmamento, o tratamento a ser dado ao encarcerado, a questão de família e ideologia de gênero. Em algumas questões nós não estaremos alinhados, infelizmente, porque eu o considero um bom nome para o futuro do Brasil”.[3] Os dois, tanto o raivoso pastor, quanto o famigerado político, pretendem fazer de seus valores, baseados em princípios religiosos, dominantes.
 O politicamente correto no poder
Por outro lado, o politicamente correto também impõe o seu valor, que é a não predominância de nenhum valor. Contudo, embora tenha produzido lindos discursos, permaneceu alheio à “construção sociocultural objetiva dos desclassificados sociais entre nós”.[4] Uma mera dominação linguística que, por algum tempo, foi conivente aos interesses das classes dominantes, que não viu nas lutas identitárias algo que pusesse em xeque o seu poder. Houve, de certa forma, um consenso em substituir a sociedade de classe por uma sociedade de risco, onde todos se unem para reparar os problemas existenciais criados pela industrialização.[5]
O filósofo norte-americano Douglas Kellner, lembra que com a queda do império comunista soviético muitos acreditaram que o pesadelo havia acabado. Mas novas guerras religiosas e nacionalistas explodiram: “Nos Estados Unidos, também se intensificaram as guerras culturais, em que os assaltos direitistas ao ‘politicamente correto’ funcionaram como arma de ataque às forças e ideias progressistas”.[6] Assim, diversos movimentos e partidos de esquerda, não só nos EUA, em várias partes do mundo, frustrados com fim do “socialismo real”, passaram a defender o politicamente correto. As esquerdas foram se dissociando do socialismo marxista e se aproximando da agenda progressista, que no século XIX era bandeira dos liberais. O próprio Lula em 2006 dizia ser impossível, depois de uma certa idade, ser de esquerda.
Assim os governos progressistas chegaram ao poder em várias regiões do mundo. Os conceitos antitéticos de “direita” e “esquerda” espatifaram-se na epiderme de uma realidade multifacetada. Cada um achou o que é mais conveniente para classificar a sua posição. O que Norberto Bobbio dizia que “nenhum movimento pode ser simultaneamente de direita e de esquerda”[7], não condiz mais com a realidade. Na argumentação o orador se vale de um acordo estabelecido com o auditório para selecionar os fatos e interpretá-los. O orador diz o que o ouvinte está preparado para ouvir. A crise de 2008 forjou uma série de ouvintes ansiosos para ouvir um tipo de discurso diferente do que o politicamente correto oferecia.

Noções confusas: a vitória pela fama e pelo grito
No âmbito da retórica, o orador sabe que “as noções se obscurecem igualmente em conseqüência das confusões que situações novas” acabam por parir.[8] As noções de “esquerda” e “direita”, obscurecidas, forjaram uma nova fonte de argumento: o politicamente correto e o incorreto. Lula voltou a dizer que é de esquerda e muitos passaram a se assumir abertamente de direita.
A torrente de indivíduos que foram engolidos por essa nova situação se vê dividida entre o politicamente correto (que visa ser acolhedor e compreensivo) e o politicamente incorreto (mais excludente e intolerante). Assim, na mentalidade política do continente americano, Barack Obama, Fábio Assunção, Jean Wyllys, Maryl Strepp tornam-se de esquerda (politicamente correto), enquanto que o MBL, Malafaia, Danilo Gentili e Alexandre Frota de direita (politicamente incorreto). As noções políticas estão vinculadas ao discurso mais do que nunca. Cada lado oferece uma ameaça ao outro e, para os seus seguidores, gratificação. Entretanto, não precisa mais de um fundamento, como os marxistas de outrora, os liberais de Hannah Arendt a Norberto Bobbio, ou os conservadores de Wittgenstein a Michael Oakeshott. Basta adotar um discurso superficial polêmico para se identificar com algum dos lados.
Essa bipolaridade tornou a discussão política esdrúxula, não apenas pelo nível das figuras famosas que polarizam o debate, mas, também, pelo acesso à nova Ágora onde se debate o público e o privado sem critério algum: as redes sociais. Hoje os ouvintes falam mais que antes, o que poderia ser algo positivo. No entanto, o orador político encontrou uma nova forma de falar a língua do povo, e não titubeará em adotar o vocabulário que mais circula nas redes sociais. Se as redes sociais abriram caminho para a manifestação de um discurso de ódio[9], o orador político, que quer atrair um número cada vez maior para as suas fileiras, vai acabar incluindo tal aspecto em sua retórica.
Malafaia e Bolsonaro sabem para quem estão mandando a mensagem, um homem do PSDB que flerta com o politicamente incorreto, pois, segundo o seu próprio vice, Bruno Covas, Doria se diferencia dos demais políticos porque não fica nessa “geleia geral de falar os que as pesquisas indicam como politicamente correto”.[10] O politicamente incorreto é a nova doença contraída pelo discurso político atual que se alastra na esteira de Donald Trump e Vladimir Putin.
 O fim à bipolaridade viciada
Nesse jogo de linguagem dos dois comportamentos lingüísticos, a popularidade do incorreto, esse discurso historicamente furioso que tem como fim combater o avanço das conquistas sociais, fortalece o ódio. Nos faz regredir ao fundamentalismo, impondo um estilo de vida sobre a diversidade, conseqüência da globalização, hoje criticada mais por uma perspectiva reacionária do que pelo ponto de vista do lugar em relação ao global.[11]
Essa bipolaridade mesquinha há de acabar um dia. Aliás, em nossa época, dificilmente algo consegue se solidificar antes de se desmanchar no ar. Ela só está atendendo aos setores dominantes que, comprando políticos do chamado Centrão e do PSDB e PMDB, faz de tudo para fortalecer o projeto econômico que visa salvar suas fortunas. Por isso, quem deve por fim a essa divergência viciada é o povo, de maneira similar aos estudantes de 1968 que, insatisfeitos, ocuparam as ruas e avenidas contrários  a ordem internacional bipolar imposta pela Guerra Fria.


[1] BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 152.
[2] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,malafaia-diz-a-alckmin-e-doria-que-evangelicos-nao-vao-negociar-ideologia-de-genero-em-2018,70001940030
[3] https://br.sputniknews.com/brasil/201704208204445-bolsonaro-doria-juntos-2018-video/
[4] SOUZA, Jessé. “Os limites do politicamente correto”. ________. (org.) A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, EdUFMG, 2009. p. 100.
[5] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad: Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11.
[6] KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Trad: Ivone C. Benedetti. Bauru: EDUSC, 2001. p. 26.
[7] BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: reflexões e significações de uma distinção política. Trad: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: EdUNESP, 1995. p. 31.
[8] PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie, Tratado de Argumentação: a nova retórica. Trad: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 154.
[9] http://diplomatique.org.br/um-caminho-para-o-odio-ciberespaco-e-o-crescimento-da-extrema-direita/
[10] http://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/6396965/doria-diferencia-por-nao-ficar-geleia-geral-politicamente-correto-diz


[11] ESCOBAR, Arturo. El lugar de la naturaleza Del lugar: globalización o postdesarrollo? In: LANDER, Edgardo. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000. p. 74.

Comentários

Entre em Contato pelo WhatsApp (11) 988706957

Nome

E-mail *

Mensagem *

MAIS VISITADAS