Ler o mundo é experimental



Mujica, presidente do Uruguai, e a reivindicação da palavra "experimento":


"Mas a vida é um experimento. Somente os dogmáticos, os sectários, os que se negam a qualquer mudança, podem ficar contra a honradez da palavra experimento.

Viver é experimentar, buscar soluções que às vezes funcionam e às vezes não.

Por que agora reconhecemos o casamento homossexual e antes não? Por que mudamos? E a escravidão, como foi que acabou?Toda a vida foi assim. Agora, os retrógrados que não querem mudanças certamente vão se assustar. Eu reivindico a palavra experimento."


[José Pepe Mujica]


Um dos maiores nomes entre os estadistas contemporâneos está José Pepe Mujica, atual presidente da República Oriental do Uruguai, ainda mais por sua forma de ver o mundo, a política e de pensar o sistema pós-capitalista. Não se esconde nele, principalmente, a forma como lê o mundo, as relações da vida, as relações políticas, as relações com o capital, as relações com os grandes centros de poder: o egocentrismo e o eurocentrismo.


Não se pode dizer que ambos centros de poder sejam contemporâneos, pois o último (o eurocentrismo) constrói pilares de pensamento, de ciência, de política e colonizações desde o século XV sobre a América, portanto vale dizer que um dos pontos cruciais do poder eurocêntrico é a fragmentação das culturas diferentes (Incas, Astecas, Quechuas, Ameríndios) ou mesmo o claro apagamento delas (sofrido pelas colônias de exploração). O pensamento confunde "ler" com excluir, matar, oprimir, apagar da História que povos ditos menos avançados já tinham desenvolvido Astronomia, chocolate, calçadas e ruas e um sistema mitológico que vivia em integração com a Natureza. Porém ler não é apagar, ler é participar do mundo. Por exemplo, muitas vezes se separa o que é complementar, na cultura ameríndia as forças são complementares como o sol e a lua, ou a noite e o dia, mostrando que deve haver diálogo entre as partes que fazem o todo e o todo é feito de diferenças e [des]semelhanças ( propus isto no mestrado): 


"o homem, segue criando as duas irmãs gêmeas - história e língua - muitas vezes confundidas, porém sempre distintas e complementares. Pois ao longo dos caminhos da humanidade (con)fundiu-se as duas a uma unidade – em torno de um logos europeu ocidental – porém, são elas distintas e complementares como o Eu e o Outro em cada diálogo; como Aricoute e Tamendonare na mitologia Tupi, que cooperam entre si, contudo são (des)semelhantes e desunidos; como Sol e Lua, na mitologia ameríndia, são alteridades ímpares e indispensáveis uma para a outra.

Como os gêmeos tupis, os ‘gêmeos’ craôs se opõem continuamente. O mesmo pode ser observado em muitos outros mitos ameríndios, em que dois personagens ‘candidatos à união’, como diz Lévi-Strauss, são, ao contrário, reiteradamente afastados. O pensamento ameríndio se recusa a emparelhá-los, e é a oposição, o afastamento, a diferença, o fundamento de tudo o que fazem e, conseqüentemente, do mundo em que vivem os humanos[...] A terra onde vivem os humanos, intermediária, resulta do choque entre os dois: o do alto, do céu, empurrava para baixo, enquanto o de baixo, subterrâneo, empurrava para cima. Por isso o patamar humano, as valências se invertem: as montanhas são ligadas ao ‘de baixo’,e a bacia fluvial onde vivem os matsiguengas, ao ‘de cima’. O jogo entre esses princípios fez o mundo, e continua a movê-lo. (Perrone-Moisés, 2006, p.249)

História e língua apareceram também na mitologia como um constructo das relações humanas, em suas formas de ciência, tecnologia, política e linguagem, em seus modos mais subjetivos de construir humanidade." 


O outro centro de poder, o egocentrismo, é fruto e efeito da visão excludente que tomou o mundo com o Capitalismo, ou melhor, acentuou-se com ele  a partir do Século XV. Não há nada de errado com o Capitalismo em si, mas com os motores que o movem: nós seres humanos, homens e mulheres do capitalismo; nós somos o Capitalismo e não podemos fugir desta responsabilidade fatal. Contudo,  uma visão, uma leitura, voltada para o individualismo fez com que nos tornássemos mais ligados a um modo de vida sem experimentações do que de privações [resquícios do contrato social, do contratualismo iluminista, talvez]. O que dá uma noção de que ler o mundo não é algo único, singular e partilhável, mas sim algo privado, privilegiado e individualista. 

Há uma diferença grande,embora pareça tênue entre olhar "singular" e olhar "privilegiado", pois quem olha, lê, avalia, experimenta, projeta, vislumbra, sonha com todos os seus sentidos, porém que se "privilegia" acha que seu olhar é melhor do que o dos outros, por isso apaga, não ouve, não escuta, oprime, seleciona por critérios pessoais e não experimenta, não questiona tabus, não quebra preconceitos, vive do Status Quo do próprio ego. 

Somos todos singulares, por isso o olhar de cada um é importante e complementar. Somos todos diferentes, por isso a leitura de mundo de cada  um é uma fresta da realidade real que pode nos dar uma dica do real da história: a História se move constantemente, em perpetuum móbile, fazendo movimentos centrífugos e centrípetos (manutenção e mudança; conservadorismo e revoluções). Somos todos um complemento e não somos completos em nós mesmos. Somos uma completa incompletude ou uma completude incompleta. Esta é nossa condição como seres humanos, entendidos como seres culturais.

O que José Pepe Mujica propõe é olhar para o experimento da vida e viver, não como que quem não experimenta e exclui, mas como quem sabe que ao ler está mergulhado plenamente em uma experiência que o faz evoluir como ser humano, como cidadão do mundo, como agente histórico, como ser, diria Neruda, "Poítico, Físico. Po[ético]."

Mujica reivindica a palavra experimento, nós deveríamos reivindicar a vida em experimento a cada dia, talvez assim caiam todas as máscaras dos centros de poder do ego e do eurocentrismo.

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