A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa

"Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa." [O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx, Capítulo I]


"Nos anos 1960, um ex-presidente era investigado por causa de apartamento.

PAULO CÉSAR DE ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Naquela manhã de domingo, o ex-presidente tomou seu café saboreando
também a primeira página do jornal com pesquisa do Ibope que o colocava
na liderança à Presidência da República, com 43,7% das intenções de voto.
Meses depois, a candidatura dele seria homologada, por unanimidade, por
seu partido, num evento com a presença de vários artistas.

Parecia mesmo apenas uma questão de tempo para Juscelino Kubitschek
voltar a governar o Brasil. "JK venceria se eleição fosse hoje", dizia o "Correio da Manhã" com os números da pesquisa, em setembro de 1963. Mas aí veio o golpe civil-militar, em março do ano seguinte, e a candidatura dele ficou seriamente ameaçada. Iria se iniciar a caçada ao ex-presidente, que na época, aos 62 anos, era senador da República.

O JULGAMENTO DE LULA

O golpe foi realizado sob o pretexto de combater a corrupção e livrar o país
dos comunistas. Num primeiro momento, os militares procuravam guardar
algum sinal de legitimidade, prevalecendo aquilo que Elio Gaspari chamou
de "ditadura envergonhada". Eleito pelo Congresso Nacional –inclusive com o voto de JK–, o primeiro general-presidente, Castelo Branco, disse que manteria as eleições presidenciais de outubro de 1965 e daria posse ao eleito. O seu governo seria de transição, prometendo fazer uma espécie de limpeza geral no país, especialmente da corrupção.

PRESIDENTE E JUIZ

"Até o problema do comunismo perde expressão diante da corrupção
administrativa nos últimos anos", afirmava o marechal Taurino de Resende,
presidente da Comissão Geral de Investigação (CGI). A este órgão cabia investigar, reunir documentos e indicar quem deveria ser cassado por corrupção ou subversão. A lista era levada ao Conselho de Segurança Nacional que podia acatar ou não a denúncia, mas o julgamento final era do presidente (e neste caso, juiz), Castelo Branco - que defendia, em discurso, não apenas punição aos malfeitores, mas também "reformas de profundidade na estrutura orgânica da administração pública" para curar "a enfermidade da corrupção no país". Como Getúlio Vargas já havia morrido e lideranças como João Goulart e
Leonel Brizola estavam no exilio, os golpistas se voltaram contra Juscelino
Kubistchek, o erigindo a símbolo do que não podia mais prosperar na
política nacional. Diziam que sempre se roubou no Brasil, porém, num nível imensamente maior a partir do governo JK –que seria culpado também pela inflação e a recessão econômica.

Com sua fúria punitiva o governo militar iniciou então uma devassa na vida
do ex-presidente. Foram vasculhadas empresas e bancos nacionais, americanos e suíços na tentativa de localizar investimentos em nome dele ou de familiares. "Não tenho um centavo em banco estrangeiro. Deveria ter para qualquer eventualidade. Mas não tenho nada, rigorosamente nada", se defendia. Foi também investigado quanto o ex-presidente havia recebido por viagens de conferências no exterior, na suposição de que ele não teria pago o imposto de renda. Documentos sobre supostos atos de corrupção em seu governo eram liberados para a imprensa pela Secretaria do Conselho de Segurança Nacional. "Não havia dia em que não se verificasse algum tipo de imputação contra sua honra para justificar a punição iminente", afirma seu biógrafo Claudio Bojunga.

TRÍPLEX EM IPANEMA

A denúncia que se tonaria mais rumorosa envolveu um novíssimo prédio de
cinco andares, na avenida Vieira Souto, em Ipanema, onde JK foi morar,
pouco depois de deixar a Presidência. Ele residia no segundo andar e,
oficialmente, pagava aluguel ao seu amigo (e ex-ministro da Fazenda)
Sebastião Paes de Almeida.

Mas, segundo a denúncia, o amigo, embora milionário, era um "laranja" do
ex-presidente, usado para encobrir o real proprietário do edifício construído
com dinheiro doado por empreiteiros de grandes obras no governo JK. No processo afirmava-se que a localização, o projeto arquitetônico, a decoração do prédio, tudo teria sido feito ao gosto de Juscelino Kubistchek e de sua esposa Sarah.Testemunhas teriam visto o ex-presidente visitando as obras; outros afirmavam que dona Sarah era quem determinava alterações nos pavimentos. Dizia-se ainda que inicialmente eles iriam morar num tríplex nos andares superior mas "quando começaram rumores sobre a propriedade do edifício, o ex-presidente abandonou a ideia do tríplex e resolveu habitar apenas no 2º pavimento".

Outro indício estaria no nome do edifício - "Ciamar" -, interpretado como
anagrama de Márcia, filha de Juscelino Kubitschek. Esta denúncia não prosperaria na Justiça comum, sendo arquivada por falta de provas, em maio de 1968. Mas até lá, muita tinta foi gasta em reportagens sobre "o edifício de Kubitschek" –chancelando nas manchetes o que o ex-presidente negava. E tudo isto servia de combustível para quem desejava tirá-lo da disputa à presidência em 1965, e para a qual ele abraçara o discurso das reformas sociais. "Reformas com paz e desenvolvimento", seria o mote da campanha de JK.

NA IMPRENSA

"A Revolução estará sendo traída enquanto o rei da corrupção permanecer
impune", cobrava o deputado e repórter Amaral Neto, enfatizando "que há
muito tempo esse moço já deveria estar na cadeia". Por sua vez, "O Estado de S. Paulo" dizia que "pelos crimes cometidos contra o erário público" durante o governo de JK com a "deslavada conivência dele" era "perfeitamente justa e merecida" a sua cassação. E o "Jornal do Commercio" sentenciava que "o sr. Kubitschek é incompatível com a nova era que se iniciou".

Após investigações da CGI, em maio de 1964 o Conselho de Segurança
Nacional opinou pela cassação de JK por corrupção e alianças com
comunistas. Caberia agora, portanto, ao presidente (e juiz) Castelo Branco
condená-lo ou absolvê-lo. A partir daí o drama de Juscelino Kubitschek empolgou o país, gerando suspense no mercado e em todos os círculos políticos.

O seu partido, o PSD, sofria junto porque não tinha um plano B sem JK- que fez no Senado um discurso de repercussão, afirmando que estava sendo perseguido, não pelos seus defeitos, mas por jamais "compactuar com qualquer atentado à liberdade e agir sempre com dignidade administrativa". Em meio à expectativa da condenação surgiram boatos de que o ex-presidente poderia ter também sua prisão preventiva decretada –algo que o próprio Palácio do Planalto tratou de desmentir.

Porém, o suspense continuava; afinal, tratava-se do destino da maior
liderança política do país após Getúlio Vargas e o líder das pesquisas
eleitorais. Àquela altura, o telefone do ex-presidente já estava grampeado
pelo recém-criado SNI e Castelo Branco ouviu uma das conversas em que JK se referia a ele como "filho da puta".

DEFENSORES

Apesar do clima policialesco e repressivo, vozes saiam em defesa do expresidente.

"Por que, sr. general, cassar o mandato de Juscelino Kubistchek?", indagava o jurista Sobral Pinto, e ele próprio respondia que "na impossibilidade de vencer o ex-presidente nas urnas, seus adversários querem arrancar-lhe o direito da cidadania, único expediente capaz de afastá-lo da luta eleitoral". Dias antes, Danton Jobim também escreveu artigo direcionado ao presidente Castelo Branco, convidando o "supremo juiz" à reflexão.

"O país não vai lembrar-se amanhã dos coronéis que instruíram o inquérito ou dos políticos odientos que instigam essa caçada humana, no qual um dos maiores brasileiros do nosso tempo é perseguido como criminoso vulgar. Mas o nome de Vossa Excelência ficará indissoluvelmente ligado à cassação do mandato de Juscelino Kubitschek".

No último dia de maio, lia-se na coluna de Carlos Castelo Branco que a candidatura de JK se sustentava "apegada apenas a um fio de esperança".
Uma semana depois não restaria mais nada.

A DECISÃO

Às 19h27, de segunda-feira, dia 8 de junho, o programa A voz do Brasil
irradiou o decreto do marechal Castelo Branco, que cassava o mandato de JK
e suspendia seus direitos políticos por dez anos. Para alegria dos adversários, o grande favorito às eleições presidenciais de 1965 estava banido da disputa.
Carlos Lacerda –que naquela pesquisa do Ibope figurava em segundo lugar–,
elogiou a decisão contra JK. Disse que foi "um ato de coragem política, de
visão, embora preferisse batê-lo nas urnas".

Seu colega udenista Edson Guimarães também afirmou que a decisão de
Castelo Branco "veio na hora exata" para mostrar "que a Revolução não foi
feita para manter privilégios, mas realmente para mudar o cenário da
política nacional".

A ditadura era envergonhada mas não se avexou de banir o ex-presidente
com justificativas frágeis –fato destacado no editorial do "Diário Carioca":
"Sem provas de espécie alguma, absolutamente sem provas, baseando-se
apenas em indícios e suposições, cortou-se sumariamente o curso de uma
vida púbica dedicada desde os seus primórdios aos interesses da nação,
negando-se com isso ao povo o direito de votar num de seus líderes mais
representativos, dono de um passado de realizações tão importantes quando
internacionalmente consagradas".

Concluía o editorial dizendo que se JK "hoje não é mais candidato à Presidência da República, é muito mais que isto: é o símbolo vivo e fremente da vontade de um povo". O "Correio da Manhã" também criticou a cassação "sem provas convincentes". No mesmo jornal, Carlos Heitor Cony desabafou: "Afinal, foi consumada a grande estupidez", prevendo que com aquele ato o presidente Castelo Branco "selou seu destino perante a nação e perante a história: é um homem mesquinho".

O "Correio da Manhã" e o "Diário Carioca" foram exceções entre os principais
jornais do país, porque a grande imprensa, em sua quase totalidade, apoiou a
cassação de Juscelino Kubitschek.

A Folha de S.Paulo, "O Estado de S. Paulo", "O Dia", a "Tribuna da Imprensa",
o "Jornal do Commercio", o "Jornal do Brasil" e, principalmente, "O Globo", com um editorial intitulado "Uma lição para o futuro", afirmando que "as medidas excepcionais e enérgicas que estão sento tomadas pelo governo, visando à punição dos responsáveis pela corrupção" teria "o mérito maior de mostrar a todo o mundo que desta vez se realizou algo para valer". A Folha de S.Paulo também justificou que ao ex-presidente foi concedido "o direito de defender-se amplamente e com a máxima ressonância".

CRÍTICAS

A condenação de JK foi destaque na mídia internacional –mas lá numa visão
favorável ao criador de Brasília. O jornal "Le Monde", o "New York Post", a "Time" e a "Newsweek", por exemplo, criticaram a decisão do marechal Castelo Branco. E o matutino El Espectador, de Bogotá, refletiu que "antes que uma garantia de paz política e social no Brasil" aquele ato seria "destinado a causar mais sérios e talvez irreparáveis traumatismos no presente e no futuro do pais".
Juscelino Kubistchek recebeu a notícia da cassação cercado de amigos e
familiares em seu apartamento, na Vieira Souto. Dona Sarah mostrava-se muito abatida e revelou ter tomado tranquilizantes. "Isso tudo foi uma barbaridade", desabafou.

Lá fora, uma multidão se aglomerava nas imediações do Edifício Ciamar
(hoje, JK) e o tráfego ficou congestionado nas duas pistas da avenida. Algumas senhoras choravam pelo ex-presidente, enquanto um grupo de golpistas e lacerdistas gritava "ladrão! ladrão!". Houve então um início de briga, foram acionadas tropas da Policia Militar e algumas pessoas ficaram levemente feridas.

O tumulto só terminou quando os manifestantes anti-JK bateram em retirada pela praia de Ipanema. Por volta das 22 horas, Juscelino Kubitschek apareceu à janela abraçado com sua esposa, ocasião em que os populares deram vivas à democracia e cantaram o Hino Nacional e o Peixe vivo.Pouco depois, com a voz embargada o ex-presidente ditou um manifesto em que afirmava: "Sei que os meus inimigos me temem porque temem a manifestação do povo, e assim, com esse ato brutal, me afastam do caminho das urnas, única manifestação válida num regime verdadeiramente democrático".

Disse também que embora "silenciado pela tirania, restarão documentos irrefragáveis, restará a reparação que a história oferece, dignificando os que
forem sacrificados pela má fé, pela incompreensão, pelo ódio".

E ele então concluía com um vaticínio certeiro e profético. "Este ato não marcará o fim do arbítrio. O vendaval de insânias arrastará na sua violenta
arrancada mesmo os meus mais rancorosos desafetos. Um por um, eles
sentirão os efeitos da tirania que ajudaram a instalar no poder."

PAULO CESAR DE ARAÚJO, historiador e jornalista, é professor do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, e autor, entre outros, de "O réu e o rei - minha história com Roberto Carlos em detalhes" (Companhia das Letras).

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