“Estamos exterminando a principal dimensão humana, que é a dimensão da interpretação.” – Rodolfo Neves.




Conversamos com Rodolfo Neves, em um café no centro da capital paulista, em uma mesa reservada, longe das alérgicas fumaças de cigarro, para falar sobre as razões e porquês, a matéria, História está no foco dos grandes vestibulares do país neste momento. Em respostas densas e complementares, Rodolfo constrói uma colcha de retalhos sobre a realidade, puxando um fio da meada claro: a importância da História. 

Falamos de Émile Durkheim, de Zygmunt Bauman, de Literatura, de Modernidade Líquida e da “Densidade moral” de nosso tempo. Além de tudo isso, Rodolfo explicou as diferenças fundamentais entre as palavras REVISITAR e REVER, principalmente para quem quer entender a História. A conversa foi saborosa, como toda conversa com Rodolfo é um acontecimento. Rodolfo é delicado, sofisticado, atento, humano e demonstra sempre ter uma escuta muito acima da média. Rodolfo é raro. Precisamos de professores como ele.

 - Rodolfo Neves é professor, sociólogo formado pela UNESP de Araraquara, foi mestrando na UNICAMP e há 10 anos é sócio do História Online, página de educação com mais de 114 mil inscritos no Youtube, com conteúdos abertos, gratuitos e de altíssima qualidade.


PERGUNTA. Redação e Dialogia.
RESPOSTA. Rodolfo  Neves.




P. Rodolfo Neves, você é formado em Sociologia e sua carreira toda foi em cursinhos de alto rendimento e aprovações, como professor de História, na maior parte do tempo. A Redação e a História nos vestibulares têm uma relação quase simbiótica. Geralmente quando o estudante vai fazer a prova de vestibular é bom para dar credibilidade, dar mais propriedade ao seu dizer, que ele use História, como você vê essa relação da importância da História nos temas de Redação?

R. Essa coisa da História e a interpretação da História, no presente, eu pego sempre a frase de Marc Bloch (1886 – 1944), na “Apologia à História”, quando diz que “Os historiadores não falam sobre a história, eles falam como eles interpretam o passado”. Então, a História não é um simples relato de fatos. Os relatos dos fatos seria muito mais uma pesquisa documental. Seria mais um substrato da pesquisa histórica. A pesquisa histórica, em si, é quando você produz uma interpretação sobre isso. Claro que a interpretação não pode ir além dos fatos, criando fatos, inventando ou invertendo fatos. Aí está a questão do porquê eu digo isso: porque há uma diferença entre REVISITAR A HISTÓRIA E REVISIONISMO HISTÓRICO. O revisionismo histórico visa alterar os fatos, negar os fatos ou dar um sentido que não é cabível àquilo. Alterando intenções de atores. Então há que se tomar cuidado também com o vocabulário. REVISITAR é diferente do REVISIONISMO. Revisitar é se propor sair do lugar, rever é apenas olhar por cima. Há uma grande diferença aí.  Este é o primeiro ponto. A história é importante quando REVISITADA e não simplesmente REVISTA.


P. A FUVEST de 2019, fez uma pergunta nesse sentido: “De que maneira o passado contribui para a compreensão do presente?”. Parecendo chamar o estudante para a reflexão entre REVISITAR que é diferente de REVISIONISMO, por isso a importância do passado para o presente, como lugar de REVISITA, colocar-se lá, para aprender, para reter o conhecimento. Além disso a PUC-CAMPINAS, vestibular 2020, também agora em outubro, cobrou o seguinte tema: “Um novo ponto de vista sobre a História”. Enquanto o ENEM, 2019, aboliu questões sobre períodos importantes como a Ditadura? Como você vê a História nos vestibulares?


R. Vamos voltar um pouco, para responder esta questão. Outro ponto, além de tomar cuidado com o vocabulário. Como primeiro ponto. Então a gente tem que partir do ponto que a História nunca é uma ciência acabada, uma ciência finda, pois as novas interpretações sempre surgirão. O limite da interpretação é o fato. O fato existiu, ok?! Descobrimos novos dados?! Então vamos reinterpretar o fato à luz dos novos dados. E não à luz de novas opiniões. Até porque a gente fugiria de um discurso mais científico. Este é ponto que importante. REVISITAR É NECESSÁRIO, REVISIONISMO É PERIGOSO. Porque este é um instrumento nas mãos, geralmente, de pessoas com segundas, terceiras e enésimas intenções ao que a História se propõe. Aí vem o segundo ponto. Revistar a história varia do viés quantitativo e qualitativo. Qualitativamente revisitar a história é necessário, mas o quanto se revisita a história depende do momento em que vivemos. Como vivemos em um século XXI, que ainda não aprendeu a lidar com as novas tecnologias da informação, ainda não sabe, e ainda estamos na infância desse novo modo de se comunicar. Que é um modo instantâneo, um modo denso. Vou até usar um conceito de Émile Durkheim (1858 – 1917), que é “a densidade social/moral”. O volume de comunicações por unidade de tempo é infinitamente maior que há 30 anos. Então imagine há 100, há 200, há 500 anos!? Então com esse aumento dessa “densidade moral” (como diz Durkheim), com esse volume de comunicações tão grande, em um curto espaço de tempo e com uma densidade de informações muito grande, a gente perde o tempo lento da interpretação. Você como professor de redação sabe disso, como literato sabe que a interpretação requer um tempo lento. Se não, nós leríamos um livro uma única vez, um clássico uma única vez e não o leríamos mais.
 
P. Verdade a literatura tem um tempo lendo. Diria Fernando Pessoa, poeta português (1888 – 1935) “Ter é tardar”. A interpretação é demorada, é um tardar-se sobre algo, é um revisitar demorado, lento e profundo; é tardar-se.

R. Isso. Tempo lento. Tardar-se. Vamos manter essa analogia. Por que revisitar os clássicos, como Victor Hugo (1802 – 1885)? Por que você vai ler um Victor Hugo aos 15? Por que é o mesmo livro, mas é outro Victor Hugo aos 30? E outro aos 65? Porque essa obra tem camadas. Tem camadas diversas. Camadas acessíveis de acordo com a sua vivência, de acordo com sua idade. Então, o livro clássico requer um tempo lento de depuração.


P. Umberto Eco (1932 – 2016) e Italo Calvino (1923 - 1985) falam disso. Que uma obra de arte tem camadas que vão se revelando com o tempo, com a maturidade, com a vivência.


R. Há camadas que são inacessíveis aos 15 anos. E tem camadas que eram acessíveis aos 15 e se tornam inacessíveis aos 35. Então é uma coisa meio que dialética. Ela é antitética e sintética, ao mesmo tempo. É muito sofisticado tudo isso. Vamos comparar a História a um livro clássico. Ela (a História) tem que ser revisitada (assim como um livro clássico), mas no tempo lento. Em um tempo que requer maturação. Requer a identificação de qual camada você está abordando. E como esses novos meios de comunicação não há tempo, há instantaneidade. Tudo tem contorno, o que nos falta é tempo, ou melhor, consciência para percepção desse contorno. Quando Zygmunt Bauman (1925 – 2017), sociólogo polonês, fala da liquidez do mundo moderno, no senso comum, é lido como “nada é feito para durar”, “tudo é líquido”. Não! Ele não está dizendo que tudo é indefinido, nem que tudo é líquido. Pelo contrário, tudo tem contorno, o que nos falta é tempo para esta percepção do contorno. “Ah! Mas ele está dizendo que tudo é falso, porque tudo que é verdade hoje será falsidade amanhã!” Não. Minha resposta é não. O que é verdade hoje continuará sendo verdade amanhã, mesmo em um Capitalismo pós-moderno. Aí que gosto de dizer que a “liquidez” do Bauman. Também quer dizer “Liquidar”, “Exterminar”. Estamos exterminando a principal dimensão humana, que é a dimensão da Interpretação.
 

P. Vamos a dois exemplos práticos. Em São Paulo ocorreu a alteração do nome do Minhocão, no centro de São Paulo, saiu o nome de Elevado Costa e Silva para Elevado de João Goulart.  Ou mesmo o museu nacional na Holanda – Rijkmuseum - mudou o nome de “Era dourada holandesa” para nome pontual: “Século 17 holandês”. O que isso traz de importância de revisita à História?


R. Aí que vamos ao cerne das suas perguntas (primeira e esta).  Quando a Holanda fala “olha não dá para no meu museu, falar que o Rembrandt (1606 – 1669) é da era de ouro, ele é do século XVII”. Hoje é diferente, por que eu não posso considerar tudo aquilo que a Holanda fez no século XVII como positivo?! Pois é contra os Direitos Humanos! Então eu não posso ler com os mesmos olhos de séculos passados! Eu não posso interpretar o que a Holanda fez os olhos de um homem do século XVII, eu sou eu sou um homem do século XXI. O homem do século XXI sabe que existiu o Holocausto, sabe que existiu uma Segunda Guerra, sabe que tudo isso aconteceu porque não existiam Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948). Então, hoje eu tenho muito mais camadas a serem exploradas do que o Homem do século XVII. Então acho louvável a FUVEST, os vestibulares, os museus, os governos terem atenção a isso. Incomoda? Incomoda àqueles que estão presos a certezas. Que é outra negação da dimensão humana (negar que somos provisórios, inconclusos, incompletos). Nós não somos definidos, prontos, somos sempre um "constructo". É louvável que os vestibulares estão cobrando História. É louvável, que os vestibulares sérios, estão dizendo: temos um problema sério! Não dos alunos, mas nos professores! Os vestibulares dão as direções para as aulas, os conteúdos. Quando o vestibular cobra História de forma séria e como revisita, ele direciona o saber de uma geração, de uma sociedade, não para o revisionismo, mas para a REVISITAÇÃO.  E esta é a importância da História. E talvez seja o dever cívico e político de um vestibular: chamar a atenção para a História, para o REVISITAR e não o simplesmente REVER.   

Esta entrevista foi feita para o Redação e Dialogia, pelo Professor Doutor Fabrício César de Oliveira, em meados da primavera de 2019.

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