Ética não tem nome



Para Rodolfo Neves,

Ética Não Tem Nome

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” Esta frase contundente do livro "Ensaio Sobre a Cegueira", do autor português José Saramago (1922 -2010), pode traduzir muito o conceito de "Imperativo Categórico" de Immanuel Kant (1724 -1804). Porém o caminho é arriscado, cheio de pedregulhos, pois o filósofo alemão é considerado um dos últimos a erguer uma Filosofia só para entendidos, mas isto não diminui a sua sagacidade em levantar uma obra teórica que é extremante voltada à moral e à ética. Por isso, vale a analogia com um dos personagens mais esclarecedores dos costumes postos em prática e ficção da literatura contemporânea: a Mulher do Médico, é a encarnação da ética de Kant à Saramago.

O caminhar pela filosofia nunca foi o mais fácil, Kant metodicamente o sabia. Viveu toda a sua vida em Königsberg e fazia seu passeio cronometrado como uma obra de envergadura extremamente racional deveria ser. Os passos do último filósofo prussiano da Era Moderna passaram por distinguir e colocar em debate duas linhas: o empirismo (que privilegiava o uso dos sentidos, que geraria a famosa obra "Física  dos Costumes"); e o racionalismo (cujo uso da razão seria o lugar do absoluto, que gerou a "Metafísica dos Costumes"). Kant critica o uso exagerado tanto da razão quanto do empirismo, ou seja, não há como atingir a "maioridade intelectual" sem gastar o suor na caminhada pela autonomia, a busca da regra própria, sem investigar o mundo pelos sentidos ou sem experimentá-lo pelo uso do pesar crítico. No movimento dos passos e do debate sobre a teoria crítica do prussiano há, portanto, o "Imperativo Categórico", espécie de axioma moral encontrado pela razão. Como exemplo, o conhecido mandamento "não mentirás" é um imperativo, pois se você precisa de uma religião para não mentir é porque você ainda está na "menoridade intelectual". Ou seja, por investigação lógica encontra-se uma Ética universal que independe de um mandamento de apenas uma religião. Com isso, já com os pulmões aquecidos ao final da caminhada, chegaremos à sustentação de um dos pilares kantianos: "a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo (...) isto é seu supremo valor. Obedecer às próprias leis e ser livre".

Há um hiato de tempo e de escolhas entre Kant, século XVIII, para Saramago, Século XX, considerável. Um era filósofo, o outro um literato. Entretanto, basta analisar a criticidade de ambos para encontrarmos pontos de acordo. Saramago se distinguia de Kant por escolher a metáfora como sua melhor aliada, o bom uso da palavra literária e a acuidade linguística voraz que indignadamente erguia contra as opressões do mundo. Porém ambos bebem na mesma fonte categórica de Kant: todos somos responsáveis por todos. Saramago parece dizer que ser ético é fazer o bem, o justo, o melhor sempre, por meio de um Imperativo Categórico lógico claro: faça o bem, mesmo que ninguém veja. Nota-se isso ao mergulhar os olhos na fatal obra do único Nobel de Literatura e língua portuguesa. Por exemplo, a Mulher do Médico (personagem propositalmente sem nome), é a única que enxerga em um mundo de cegos. Uma cegueira branca toma as pessoas, sem explicação científica ou divina e isto causa desespero em uma das mais profundas barbáries fictícias da literatura - estupros coletivos, roubos, pandemônio, legiões de famintos e de indigentes se alastram sobre a terra, tomando de assalto uma espécie de cidade global. Contudo, é a Mulher do Médico a única que vê. Mas onde está a Ética nela? Em não abandonar o grupo de cegos, em não se deixar perder pelo sentido (a visão) que tem acima dos outros, em não se fazer de herói ou vítima em situações em que todos estão à perigo. O ápice se dá quando, no livro, as mulheres têm que trocar favores sexuais com outros homens para saciar a fome do grupo a que pertenciam. Pura barbárie. Extrema violência. E mesmo nessa situação inóspita, a Mulher do Médico faz o que tem que fazer em nome e em responsabilidade por todos. Embora, controversa a cena, há nela ética, há nela uma metafísica diante à física dos costumes. Por uma escolha lógica e racional encontrou-se um imperativo categórico que transcende a moralidade de uma religião.

Notadamente, o caminho para entender Immanuel Kant é racional e exige muito de nossos sentidos, assim como para suportar os horrores que a ética tem que passar constantemente na realidade ou em uma obra literária de José Saramago. Há dentro de nós uma coisa que não tem nome, não tem religião, não tem raça, orientação sexual, e essa coisa é o que somos e dela nos alimentamos como se a chamássemos de Ética, como princípio categórico kantiano ou 'saramágico'.    

Fabrício Oliveira





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