Sobre Bauman, Medos sólidos e a Modernidade Líquida.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, instaurou uma metáfora para definir nosso tempo
moderno que deu muito certo: Modernidade Líquida.
A definição de “líquido” vem da de “fluidez”, segundo a Enciclopédia britânica, que é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos é que eles “não podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis” e assim “sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal pressão.”
Além disso, os fluidos não mantêm a forma com facilidade, diferente dos sólidos. Também se movem com facilidade, mas não são facilmente contidos, pois escorrem, transbordam, vazam, fluem, respingam.
Essas são as razões para considerar
“fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a
natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade.
[Bauman, 1999, pág. 7 – 9]
“Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.” [Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista, 1848]
“Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.” [Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista, 1848]
“Derretimento dos Sólidos”, como
traço marcante da nossa modernidade. Os poderes que liquefazem passaram do
“sistema” para a “sociedade”, da “política” para a “política da vida” – ou
desceram do nível “macro” para o nível “micro” do convívio social.
Diferenças: Modernidade Líquida não é
“Pós-modernidade”, ou “segunda modernidade”, ou “sobremodernidade” ou “o fim da
história”.
Literatura e Emancipação: Numa versão apócrifa da Odisséia ("Odysseus und die Schweine: das Unbehagen an der Kulitur"), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros enfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram de sua nova condição e resistiram desesperadamente aos esforços de Ulisses para quebrar o encanto e trazê-los de volta à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha encontrado as ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos novamente, fugiram numa velocidade que seu zeloso salvador não pôde acompanhar. Ulisses conseguiu afinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele eriçada deu lugar a Elpenoros - um marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos os sentidos mediano e comum, exatamente "como todos os outros, sem se destacar por sua força ou por sua esperteza".
O "libertado" Elpenoros não ficou nada grato por sua liberdade, e furiosamente atacou seu "libertador": Então voltaste, tratante, intrometido? Queres novamente nos aborrecer e importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos corações sempre a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao sol, eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditações e dúvidas: "O que devo fazer, isto ou aquilo?" Por que vieste? Para jogar-me outra vez na vida odiosa que eu levava antes? [Modernidade Líquida - Zygmunt Bauman]
1) “A rotina pode apequenar, mas ela
também pode proteger.” [Richard Sennet]
2) “O que está errado com a nossa
sociedade em que vivemos é que ela deixou de se questionar.” [Cornelius Castoriadis]
3) “O que foi separado não pode ser
colocado novamente (como uma grande estátua que se fez em cacos). Abandonai
toda esperança de totalidade, tanto futura como passada, vós que entrais no
mundo da modernidade fuida.” [Zygmunt Bauman]
4) Em relação a hoje e à nossa própria
condição, creio que estamos diante de uma situação nova na história, porque
temos que ser libertados de uma sociedade rica, poderosa e que funciona
relativamente bem.” [Herbert Marcuse]
Disserte sobre o conceito de
Emancipação – libertação da sociedade – e a Visão Medrosa do Homem
contemporâneo em relacionar-se na Modernidade Líquida. Use argumentos de temas
já trabalhados do primeiro semestre, ou da sua formação em outras escolas e do
mundo, para dar exemplos e criar um texto com concretude frente à conceitos
abstratos (como exercício para a FUVEST).
Leitura do Conto: Pequenas Distrações
A antiga mureta subiu com a rapidez com que sobem os tijolos de uma
sepultura. As setas dos portões cresceram apontadas para o céu, e só não se
perderam no espaço porque a laje do primeiro andar do sobrado as conteve... com
determinação. Uma guarita se instalou na calçada entre as arvores moribundas na
entrada dos automóveis, no chão cimentado que antes da reforma era um jardim
ingênuo, de copos de leite e rosas vermelhas.
As janelas dão contra a vontade para a rua, a rua... envergando grades
de puro aço que entre as frestas mal permitiria a passagem de um gato esguio. A
casa antigamente singela, só não se transformou num bunker total de segurança
máxima, porque permanecia vulnerável às quedas dos aviões, do jeito que as
coisas iam; aos bombardeios aéreos, que mais cedo ou mais tarde o crime lançaria
mão.
O patrimônio da família - o medo - estava provisoriamente a salvo; medo
de ladrões, dos sequestradores, dos estupradores, medo dos ventos, das
enchentes, dos miseráveis, dos poderosos, dos fiscais, medo do terror, dos
traficantes, dos negros, dos nordestinos, medo dos maloqueiros da favela, dos
vendedores, dos cobradores, dos pregadores fanáticos, dos moto boys que fumam
maconha, dos ônibus lotados que despencam pela rua, medo da liberdade, medo da
morte, medo da vida, medo do outro.
Apesar de já inexpugnável, a fortaleza crescia ainda mais - era preciso
assegurar-se da confiabilidade dos guariteiros. Assim a família instituiu o uso
doméstico do crachá, todos os novos residentes: pai, mãe, avó, tio avo, filho,
duas filhas, nora e genro, deveriam portá-lo no peito, cabendo ao guariteiro
liberar a entrada somente aquele que cumprisse a norma. E nisso as mulheres da
casa questionaram a real eficácia do método, e protestaram contra o anúncio de
que haveria crachás para os visitantes.
O que condenaria o fim ao gosto da filha mais nova de 15 anos, vista em
casa como perigosamente distraída, a receber amigas da escola. Só assim pudera
provar se os guariteiros eram cumpridores e responsáveis de suas tarefas - Sem
crachá -ninguém entra! Nem o dono, por mais inconfundível que seja aos olhos de
seus servidores.
Decidiu então pela obrigatoriedade dos guariteiros preencherem
relatórios diários, enumerando horários de saída, entrada - e numa coluna de
ocorrências extraordinárias, a passagem de terceiros, como carteiros,
entregadores de jornais, mendigos, e outras pessoas vista com suspeita! Quem
sabe não estaria ali se esboçando um crime hediondo de sequestro!
O crescimento vertiginoso desses eventos nessas estatísticas
determinavam a preferência da família por carros populares, os únicos capazes
de não chamar a atenção dos criminosos à espreita. Mas como bastasse um único
descuido para por tudo a perder, resolveu-se elidir os riscos providenciando a
blindagem da frota familiar de Uno Mile!
Na manhã seguinte decidiu-se instalar uma câmera de vídeo voltada para
os portões, evoluiu-se para um sistema completo de capitação de imagens e de
sons, ocultando-se micro câmeras, microfones, nos pontos do lar considerados
estratégicos.
Quando a filha mais nova, vista em casa como perigosamente distraída,
esqueceu-se da vigilância eletrônica, e masturbando-se, foi surpreendida pela
câmera, instalada na dispensa. Por não saber como abordar o assunto, o pai
fingiu não ter visto nada! - e transferiu o fardo para a mãe. As mulheres da
casa foram informadas que sua intimidade estava suspensa, não se sendo
aconselhável banhar-se ou trocar de roupa sem antes reservarem horários
apropriados, de curta duração, em que as gravações dos banheiros seriam
interrompidas para revisão técnica!
A mãe contornou o mal-estar argumentando se aquele era um preço alto a
ser pago, seria ainda muito baixo, caso um dia as câmeras viessem a registrar
cenas de estupros! Quanto à filha mais nova de 15 anos, vista em casa como
perigosamente distraída, foi severamente admoestada pela indecência que gerou a
situação... mas ganhou da cunhada como consolo um filhote de Chiuaua, a quem
deu o nome de Speed Gonzales. Tanto se apegou que passaram a ser tratados na
casa como casal Gonzales!
Agora o sistema de segurança era comprovadamente perfeito... mas e se
algo falhasse...? Foi necessário reforçar a segurança com pit bulls amestrados,
Goebbels e Goering. Com penúltima instancia, sim porque havia uma penúltima
instancia, metralhadoras de cano curto, Calachini Cov, adquiridas à um
contrabandista para armar a família contra terríveis conseqüências de um porre,
um surto de loucura, ou até mesmo da traição do segurança nordestino de
plantão! Ah... a traição do segurança nordestino de plantão! A lógica imperava
mais uma vez, para enfrentar o pior inimigo, somente com a mais poderosa arma
do pior inimigo.
O recebimento de pizza, duas vezes por semana, mereceu o nome de
Operação Marguerita 1, claro, depois se repetindo com 2, 3, 4, consistia na
distribuição dos homens da família em pontos recônditos da casa, a espreita...
com suas Calachini Covs em punhos, prontas para disparar. Escondendo-se o pai
atrás da janela do sótão com uma granada na mão onde poderia observá-lo em
torno e contra-atacar se necessário! Enquanto o mulheril se postava em alerta
na sala de jantar, empunhando talheres pontiagudos, especialmente afiados para
a ocasião, com que deceparia os vilões acuados, os dedos, ou as mãos, ou que
mais fosse preciso...
O tio avô recebia a entrega pelo vão da jaula de portões, não sem antes
obrigar o entregador a provar um naco da pizza. Para certificar-se se não
trazia soporíferos, barbitúricos, ou drogas de qualquer espécie, que pudessem
arrefecer as trincheiras da família.
Por que atravessar a vida arrastando esse fardo cruel, que nada contém a
não ser o medo do que poderia um dia... talvez... quem sabe... por ventura vir
a acontecer? Por que não baixar a guarda e cuidar sem temor para que a vida
pudesse correr solta lá fora... lá fora?
A filha mais nova de 15 anos chegou a fazer essas perguntas em casa, foi
vista -- é claro -- como perigosamente distraída, ingênua! Como seria possível
fechar os olhos para a realidade? E a realidade é que já não se respeitam mais
os valores que fizeram o mundo caminhar até aqui, sabe onde se escondem os
bandidos? Nem mais se escondem. Hoje em dia são as pessoas direitas que se
escondem. É preciso desconfiar de tudo e de todos, porque o tiro perdido, a
bala certeira vem, não se sabe de onde, mas vem! Chamar a polícia?! Nem pensar,
seria o mesmo de abrir as portas de casa e expor as fragilidades do nosso
reduto a pessoas suspeitas. Que depois certamente darão serviço a sabe-se lá
quem...
Por distração da filha mais nova de 15 anos vista em casa como
perigosamente distraída, Speed Gonzales, o filhote de chiuaua escapou para o
quintal... invadiu o cercado dos pit bulls, sendo estraçalhado por Goering, em
atraso a filha mais nova de 15 anos, vista em casa como perigosamente
distraída, não chegou a tempo, em estado de choque, seus olhos puderam apenas
acompanhar os minutos finais do minúsculo Speed Gonzales, que era devorado pelo
mastodonte que relutava para não dividir o petisco com o enfurecido Goebbels.
A família cachapou-se de tal forma com o estado da filha, que decretou
por 3 dias o toque de recolher. Durante o qual se deveriam extrair lições da
tragédia doméstica... estampado nos olhos esbugalhados e no silêncio
estarrecido da bela menina recolhida à cama. O que seria deles, se a tragédia,
viesse de fora?! Pelas mãos criminosas de estranhos? Já no segundo dia porem a
consternação familiar se esvaziou, dando espaço a algo irrefreável, que tomava
corpo, um discreto sentimento de orgulho para com a atuação de Goering, em sua
primeira situação de risco enfrentada naquela casa, diante do cãozinho invasor,
não negou fogo, mostrou a que veio!!
No terceiro alvorecer, a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como
perigosamente distraída, trajando um baby-doll cor-de-rosa transparente sobre o
corpo nu e calçando pantufas, desceu plácida para o quintal, rumo ao cercado de
cães. Esganiçando Goebbels e Goering lançaram-se em sobressalto contra a grade.
Uma Calachini Cov ergueu-se serena e calculadamente nas mãos da menina que
metralhou os cães! Com a mão esquerda brandindo a arma para o alto, o braço
direito e os quadris da menina iniciaram um meneio lento, sensual, evoluindo
para a fúria lasciva de uma dança inebriante, orgástica em torno dos cães
mortos. Os olhos azuis extasiados descobriram a câmara posta no alto. Num golpe
arrebatado, a filha mais nova, vista como perigosamente distraída, rasgou a
seda cor-de-rosa frontal que a cobria e, orgulhosa e provocadora, ofereceu os
peitos assoberbados para o equipamento, após o que, o metralhou. Até aquele
momento, toda cena poderia ter sido assistida pelo circuito interno de TV. Mas
por quem, se já não havia sobreviventes?
*Texto extraído do livro: "Peão Envenenado e Outras
Provocações" de autoria de Gregório Bacic, Escrituras Editora - São Paulo,
2002.
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