O sistema socioeducativo não difere muito do sistema carcerário.



DEBATE - REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
“Tirando os políticos, ninguém mais ganha”
Ativistas e estudiosos participaram do debate Redução da Maioridade Penal promovido pelo jornal Le Monde Diplomatique
por Emmanuel Ponte


A redução da maioridade penal foi o tema central do debate promovido pelo Le Monde Diplomatique Brasil, no último dia 18 de julho. Mediado pelo editor o jornal, Luís Brasilino, o evento teve como debatedores: Mariana Lins, do Programa Justiça Sem Muros do ITTC - Instituto Terra, Trabalho e Cidadania , o antropólogo e autor do livro “Cadeias dominadas”, Fabio Mallart, e a advogada Tatiane Cardoso, que atua na Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade). 

Um consenso entre os três expositores é o de que o sistema socioeducativo não difere muito do sistema carcerário. Apesar de prever educação e acompanhamento psicológico, são raras as unidades que oferecem alguma atenção continuada. Em algumas situações, o sistema dos jovens pode ser ainda mais cruel, como por exemplo não prever progressão de regime nem saída temporária – além do interno não saber qual será seu tempo total de cumprimento da pena.

O sistema socioeducativo de SP reproduz a realidade das cadeias
Fábio, que já ofereceu oficinas de fotografia em unidades de internação e fez sua pesquisa de mestrado sobre as relações de poder que ali florescem, conta que o estado de São Paulo começou um processo de “simetrização” dos sistemas socioeducativo e prisional de forma institucional – com início por meio da delegação de membros da gestão prisional para o sistema juvenil e até mesmo transferindo adolescentes para o sistema adulto temporariamente, em uma época que as fundações passavam por rebeliões.
Em seguida, surgem outros paralelos. Em algumas unidades, jovens passam a seguir os mesmos princípios e códigos de conduta do Primeiro Comando da Capital (PCC). Alguns comportamentos são proibidos, como o estupro e o uso de crack, e se instaura o ordenamento hierárquico, com funções como o “piloto” e o “faxina”.  Aparece a figura do “ladrão estruturado”, o jovem que ganha respeito frente os demais pelo alto número de internações e enfrentamentos com a polícia ou agentes socioeducativos.
O pesquisador cria três categorias para classificar as relações de poder dentro dos centros de internação: as unidades dominadas, que ficam sob controle dos jovens internos; as “na mão dos ‘funça’”, regidas pela ordem dos agentes – a lei do “cabeça baixa, licença senhor”; e as unidades meio a meio, que operam em um equilíbrio de forças instável. Porém ele ressalta que essas relações de poder estão em constante mudança e existe uma tensão latente, portanto não são classificações permanentes.
“O regime de internação de jovens segue a mesma lógica do encarceramento em massa”, comenta Fábio. O uso frequente do termo “cadeia” pelos jovens expressa essa simetria entre os sistemas. O antropólogo enfatiza que o que acontece nas unidades não é a ausência do Estado, mas a “presença massiva de um Estado dentro de uma lógica militarizada e punitiva”. Ao mencionar dados sobre as mortes de jovens negros de periferias no Brasil, ele afirma que a pena de morte já é colocada em prática há pelo menos dez anos.

“É preciso desmistificar a motivação da redução”[1]
O discurso que sustenta os projetos de diminuição da maioridade penal é centrado em uma única noção: a impunidade – o que Tatiane Cardoso afirma ser uma grande mentira. “Legalmente, há sim uma responsabilização”, diz a advogada. Hoje, o ECA prevê responsabilização a partir dos doze anos – idade que, segundo ela, está entre as menores do mundo. Ela assegura que ambas as propostas em votação – a redução da maioridade e o aumento do tempo de internação nas fundações – são um grande desserviço à sociedade: “Tirando os políticos, ninguém mais ganha”.
Tatiane comenta que o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui a melhor legislação de garantia de direitos do mundo, inclusive servindo de referência para a legislação de diversos países da região. Agora o que há é uma problematização desses direitos, buscando reduzi-los; porém, a grande questão está justamente na efetivação e acesso de garantias fundamentais – a medida socioeducativa deveria ter o papel de resgatar os direitos que os jovens não têm.
“O que a gestão fala é muito diferente da realidade”, diz a advogada. Em visitas, quando questionadas sobre a oferta de direitos básicos, as administrações das unidades afirmam a existência de aulas diárias, atividades esportivas e acompanhamento psicológico. Porém, ao consultar os internos, frequentemente se tem respostas como “sim, temos aulas, uma vez por semana durante uns vinte minutos”.
O estado do Ceará, que já foi apresentado como modelo de gestão socioeducativa, traz situações alarmantes: há denúncias de condutas criminosas por parte de agentes socioeducativos em diferentes unidades. Relatos de tortura, roubo de objetos e mantimentos enviados por familiares de internos, tráfico de substâncias ilícitas e, inclusive, subornos às famílias sob ameaça de espancamentos ou sanções aos jovens.
Cardoso conclui reforçando a necessidade de olhar para dentro das instituições de reclusão dos jovens e ter clareza de que lá não é um lugar saudável, que se deve prezar pela liberdade e, quando a medida for utilizada, não deve ser para um longo período. “Prezemos pela excepcionalidade e pela brevidade da internação”. A luta deve ser por mais direito e menos violência, e não o contrário.

Pouco ou nada se fala sobre as meninas infratoras
A pesquisadora do ITTC voltou sua fala para um tema que é frequentemente invisibilizado: as meninas adolescentes em cumprimento de regime de internação. As jovens internadas, assim como as mulheres presas, são alvo do que chamamos de dupla criminalização. Elas desobedeceram tanto à ordem penal, com a incidência da seletividade exercida sobre o cometimento do crime, quanto à ordem patriarcal, já que transgredir não faz parte do papel social de gênero da passividade, docilidade e submissão.
Mariana traz informações do relatório do Conselho Nacional de Justiça que trata das meninas em cumprimento de medidas socioeducativas, onde se pesquisou a realidade de cinco estados: São Paulo, Pernambuco, Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Pará. Uma das primeiras considerações do relatório é que “Ser mulher no sistema socioeducativo ou prisional é ser invisível. Seus desejos e necessidades são vistos a partir daqueles dos homens. Essa realidade está refletida na estrutura das unidades e nas normas internas de vivência. (…) Sobre as mulheres recai uma reprovação que vai além do ato infracional e perpassa a ‘decepção’ pelo descumprimento dos papéis de mãe, irmã, filha, tão esperados, como dócil e colaborativo.”
O perfil dessas meninas é semelhante ao das mulheres presas. Apesar de a maioria não ser casada, boa parte tem filhos (37,5%), baixa escolaridade – das que deveriam estar no ensino médio a maioria cursa o ensino fundamental -, são majoritariamente apreendidas por tráfico de drogas (das mulheres adultas, 63% respondem pelo mesmo crime) e estão distantes de suas famílias, pois a maioria das unidades de internação femininas está localizada nas capitais dos estados, assim como presídios femininos.
A mesma pesquisa apresenta dados qualitativos, colhidos por meio de entrevistas. Muitas adolescentes relatam violência doméstica na relação do pai com a mãe, grande parte admite não ser o primeiro membro da família selecionado pelo sistema de justiça criminal ou pelo socioeducativo. Ao se referirem aos seus atos, algumas expressam estar em busca de independência ou até mesmo ganhar algum poder de compra. O interrompimento dos estudos é frequente, normalmente em razão de trabalho, exercido principalmente para ajudar a família. O uso de substâncias ilícitas também é relatado por diversas jovens.
Grande parte delas já passou por algum tipo de instituição antes da internação, seja acolhimento institucional, casa de passagem, atendimento do Conselho Tutelar etc. Uma a cada dez possui vivência de rua. Um grande número delas relata ter sofrido ameaças de morte ao longo da vida.

Repensando o sistema de combate à criminalidade
As três exposições trazem reflexões necessárias para se problematizar a efetividade do regime socioeducativo. Segundo Fábio, Tatiana e Mariana, as fundações não funcionam para a ressocialização dos jovens infratores e sequer são capazes de coibir a criminalidade. Tanto jovens quanto presos adultos, ao serem captados pelo sistema, tendem a sair dele ainda mais estigmatizados.
Em questões como qual seria a punição adequada para crimes bárbaros, como o estupro ou o latrocínio, os expositores apresentam uma ponderação reversa: além de esses crimes serem em um número ínfimo perto de delitos como furto, roubo e tráfico de drogas, por que pensamos em isolar condutas e punir o indivíduo? Quando vamos pensar em medidas efetivas para acabar com a cultura do estupro, e não com o estuprador? Quando vamos nos sensibilizar para erradicar a pobreza ao invés de prender os pobres?
O isolamento de condutas não resolve questões estruturais. Mallart enfatiza que “o Estado estupra milhares de mulheres e crianças de forma institucionalizada semanalmente ao realizar a revista vexatória”. Ainda, Cardoso nos lembra que a discussão sobre o estupro está permeada de desinformação, por exemplo “a grande maioria dos casos de estupro, no Brasil, é intrafamiliar”.
O debate proposto revela que a disputa pelo sistema de justiça ideal deve partir de um debate interdisciplinar. A discussão sobre o combate à criminalidade deve se iniciar muito antes da política punitivista: desde o acesso aos direitos, a redemocratização do espaço midiático, e, urgentemente, a uma política eficaz de desencarceramento. A percepção de que o regime socioeducativo opera conforme os mecanismos do sistema penal nos sinaliza que a luta deve ser por garantir direitos dos e das adolescentes à uma vida digna, e não o contrário.

Emmanuel Ponte
Assessor de comunicação do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) 

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