O ato da escrita – cadeia solidária
“Escrever é um ato
de solidariedade à história”.
Essa afirmação do escritor e crítico francês Roland Barthes aclara a função social do ato da escrita. Os autores que registram um fato de importância histórica, ou mesmo um acontecimento cotidiano de sua vida particular, compartilham caridosamente um significado que, no presente ou no futuro, terá valor social. Desde o papiro, a pena, a prensa de Gutenberg, aos computadores, tabletes e celulares, a escrita permeia a vida do homem e se faz viva quando cada leitor entra em contato com o mundo do texto de um outro. Uma trajetória pessoal transforma-se em trajetória universal, porque o leitor reconhece na obra escrita uma ação ou sensação pela qual também atravessou. Por exemplo, o famoso diário de Anne Frank relata a trajetória pessoal da adolescente judia que se vê enclausurada com sua família, escondendo-se dos alemães. O diário foi o meio que a menina encontrou para desabafar suas angústias, revelar suas dores e sua compreensão sobre o que acontecia naquele período.
Essa afirmação do escritor e crítico francês Roland Barthes aclara a função social do ato da escrita. Os autores que registram um fato de importância histórica, ou mesmo um acontecimento cotidiano de sua vida particular, compartilham caridosamente um significado que, no presente ou no futuro, terá valor social. Desde o papiro, a pena, a prensa de Gutenberg, aos computadores, tabletes e celulares, a escrita permeia a vida do homem e se faz viva quando cada leitor entra em contato com o mundo do texto de um outro. Uma trajetória pessoal transforma-se em trajetória universal, porque o leitor reconhece na obra escrita uma ação ou sensação pela qual também atravessou. Por exemplo, o famoso diário de Anne Frank relata a trajetória pessoal da adolescente judia que se vê enclausurada com sua família, escondendo-se dos alemães. O diário foi o meio que a menina encontrou para desabafar suas angústias, revelar suas dores e sua compreensão sobre o que acontecia naquele período.
“Querida
Kitty,
Se você lesse
todas as minhas cartas de uma vez, ficaria espantada com o fato de terem sido
escritas com disposições de ânimo tão diferentes. Fico chateada por ser tão
dependente dos humores aqui no Anexo, mas não sou a única: todos estamos
sujeitos a eles. Se me envolvo num livro, preciso reorganizar os pensamentos
antes de poder juntar às outras pessoas, do contrário elas podem me achar
estranha. Como você pode ver, estou atualmente no meio de uma depressão.
Realmente não poderia dizer o que a provocou, mas acho que vem de minha
covardia, que tenho de encarar o tempo todo.[...]
Simplesmente
não consigo imaginar que o mundo volte a ser normal para nós. Falo sobre depois
da guerra, mas é como se estivesse falando de castelos no ar, de uma coisa que
pode nunca acontecer.
Vejo nós
oito, no Anexo, como se fôssemos um retalho de céu azul rodeado por nuvens
negras e ameaçadoras.”
Anne Frank deu vida
ao diário, escrevia nele imaginando escrever cartas a uma amiga. Ela transformou
todos nós, leitores, em sua querida Kitty. A força de suas palavras nos
atingiu. Foi somente pelos artifícios estilísticos da palavra escrita que
podemos nos aproximar da dor vivida por Anne. Se ao invés de “castelos no
ar” ela apenas escrevesse que não poderia mensurar uma vida após a guerra, não
teria o mesmo impacto. Assim, a palavra escrita ganha reforços de sentido a partir das escolhas de léxico, de construção sintática, de
estilo. Tudo isso para traduzir os pensamentos em produto escrito.
Quando o pai de
Anne, Otto Frank, publicou o diário de sua filha solidarizou-se a nós leitores,
que pudemos projetar nossas angústias nas palavras da menina; ou mesmo pudemos
reduzir o peso de nosso fardo ao visualizar o tamanho da solidão em que a adolescente
vivia. A história contida no diário passou a ser universal, não só como fator
histórico de um relato sobre o holocausto, mas como o reflexo da dor que assola
todos aqueles que passaram ou passam por clausuras, torturas, dominações, enfim
que são privados da liberdade de alguma forma.
O mesmo processo
ocorre nos livros “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, e “O ano do pensamento mágico”, de Joan Didion.
A narrativa de um autor brasileiro preso por ser acusado de ligação com o
Partido Comunista, além de partilhar sentimentos, também promove aos leitores
um mergulho nos porões da Ditadura da era Vargas. Mas, a contribuição dos
livros não para no caráter histórico, adentra as profundezas do psicológico humano,
tal qual o livro da autora e jornalista norte-americana Didion. Joan Didion
transcreve o drama de ter passado, num mesmo período, pela morte repentina do
marido e pela doença da filha. Seus escritos têm o poder transformador de
retirar o leitor do estado de passividade para alcançar a compreensão sobre um
fenômeno intraduzível: a morte. As incertezas e a difícil jornada do luto
vividas pela narradora promovem no leitor um estado de compaixão, que segundo
Schopenhauer, instauram a curiosidade e o desejo em conhecer a dor do outro,
porque de alguma forma é a sua própria dor.
Neste ponto,
encontramos a palavra escrita também como processo de identificação, que pode
se transformar em identidade. O filme “Os escritores da liberdade”, do diretor Richard LaGravenese, retrata a fascinante relação entre a
professora Erin Gruwell, interpretada pela premiada atriz Hilary Swank , e os
alunos da sala 203 da escola Wilson. A história, baseada no best-seller “O
diário dos escritores da liberdade”, cumpre o papel de denunciar o sistema
educacional como falho e discriminatório, propondo a metodologia, aplicada pela
Sr.ª Gruwell, na qual a interação por meio do poder da palavra liberta os
alunos da situação excludente - por serem alunos de bairros periféricos
estudando em uma escola pública num bairro de classe alta - para torná-los
protagonistas de um futuro esperançoso. Entre as leituras propostas pela
professora, estava o “Diário de Anne Frank”, que culminou em um projeto no qual
os próprios alunos escreveram seus diários.
Ao conhecer a história de Anne Frank aqueles alunos, que convivam com a
constatação estigmatizada de que não completariam 18 anos, condenados às
guerras urbanas, identificaram-se com a menina judia. Depois, ao escreverem
suas próprias trajetórias começaram a reconhecer e se constituir como sujeitos,
passaram a traçar perspectivas de vida. A palavra escrita, neste caso, teve o
poder de permitir que esses jovens tivessem um futuro. Alguns se tornaram
professores, outros foram convidados pela senhora Gruwell a encabeçar o projeto,
que eles viveram com ela na sala 203, e levá-lo a outras escolas públicas dos
Estados Unidos. A história é verídica e está reproduzida no livro “O diário dos
escritores da liberdade”. Quantos professores na atualidade puderam mudar sua prática
pedagógica depois de conhecerem o relato dessa professora, que não enxergava
seus alunos como números do sistema e sim como sujeitos capazes de mudar a história
particular e coletiva.
Dessa forma, a palavra escrita promove uma cadeia de atos solidários.
Da jornada de Anne, aos meninos da sala 203, aos professores e alunos da
atualidade. Do relato de Graciliano aos militantes de hoje. Da reflexão de
Didion àqueles que passam pelo luto. Mudanças de comportamento ocorreram. Como
se a adolescente judia, por meio de seu discurso metafórico pessoal, doasse sentido
à vida dos leitores de seu diário. Ocorre o que Michel Foucault chamava de
“apropriação social dos discursos”, porém ao invés da imposição dominante de uma
elite, temos a contribuição solidária de um pai que perdeu a filha, mas tinha
as memórias vivas da menina em um diário. Os leitores, por sua vez, apropriaram-se
de um discurso catártico e transformaram-no em ação. O que Anne não pode fazer,
os jovens da sala 203 fizeram, mudaram a realidade. A palavra escrita
materializou-se e ganhou continuidade, não morreu no campo de concentração
Bergen-Belsen.
Penso que consigo fazer uma série de reflexões interessantes, ou profundas, sem precisar escrever. No entanto, toda vez que escrevo, sinto que tudo aprofunda... não há tolices no ato... precisamos (todos) escrever mais.
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