A Redação de Vladimir Safatle, com opinião e argumentos de realidade

07/01/2014 - 03h00

Uma política dos afetos


A verdadeira tarefa política é a reconstrução de nossos afetos. Inebriados por discussões a respeito de sistemas de normas e instituições, demoramos muito tempo para perceber que a política é, acima de tudo, uma questão de mobilização de afetos. Discursos circulam e levam os corpos a sentirem de uma determinada forma, a temerem certas situações.

A política é a arte de afetar os corpos e de levá-los a impulsionar certas ações. Devido a isso, nunca entenderemos nada das dinâmicas dos fatos políticos se esquecermos sua dimensão profundamente afetiva.

Por exemplo, não é difícil perceber como, nas últimas décadas, uma máquina de medo e ressentimento foi colocada em funcionamento.

Esses são, há tempos, os principais afetos que circulam no campo político. Medo do tempo que não conhecemos e que pode ser diferente do passado e do presente. Medo de ficar longe demais da segurança da "nossa terra", de ser assaltado, de ter sua propriedade violada, da morte violenta. Mas, principalmente, um ressentimento travestido de pessimismo prudente a respeito dos acontecimentos e da errância necessária à toda procura.

A política baseada no ressentimento é, de fato, algo a ser pensado. Talvez possamos dizer que, em política, o ressentimento é sempre o sentimento mobilizado contra a errância.

Quando um acontecimento ocorre, muitas vezes ele não instaura imediatamente uma nova ordem. Só em situações muito amadurecidas, e por isso mesmo muito raras, vemos essa passagem imediata de uma ordem a outra. Normalmente, acontecimentos são aquilo que instaura uma nova errância, com seus erros, suas perdas, seu tempo confuso.

Esse tempo confuso é, em certas situações, onde acontecimentos ocorrem "cedo demais", praticamente inevitáveis. Contra ele, o ressentimento sempre dirá: melhor que nada tivesse ocorrido, melhor ter ficado na situação passada, por mais que ela fosse insatisfatória, ou seja, vamos dar um jeito de voltar à antiga morada, mesmo que ela esteja em ruínas. Basta ver o que hoje lemos a respeito das revoltas no mundo árabe.

No entanto, esse tempo confuso produzirá sua própria superação, por mais que ela demore, por mais que refluxos ocorram, mas à condição de produzirmos novos afetos.

Nesses momentos, cria-se uma divisão entre os que se voltam aos velhos afetos de sempre e aqueles capazes de adquirir uma nova confiança, uma nova força, mesmo quando o céu é turvo. Pois eles sabem que nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre.
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06/08/2013 - 03h00

Polícia e bandido

 
Um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento das manifestações de junho foi a revolta da população contra a Polícia Militar. Foi depois de a PM ter fechado a avenida Paulista e demonstrado toda a sua covardia e brutalidade contra quem estivesse à sua frente que a população brasileira ocupou massivamente as ruas.

Já no ano passado, ficamos sabendo, graças a estudos do Ipea, que 62% da população não confiava na PM, enquanto 63,5% afirmava que tais policiais tratavam pessoas com preconceito. No entanto, governadores como os senhores Sérgio Cabral e Geraldo Alckmin continuavam a se vangloriar das barbáries cometidas por suas polícias, sem ao menos ter a dignidade de se perguntarem porque elas eram tão rejeitadas pelo povo.

Não passou pelas suas cabeças perguntar-se se há espaço para uma polícia militar em sociedades democráticas. Talvez haja uma razão para país democrático algum ter uma polícia militar ocupando as ruas. Nesses países, ela se restringe à segurança de áreas militares. Pois ninguém aceita uma força que procura, entre outras coisas, mediar conflitos internos à sociedade civil através da lógica militar da distinção amigo/inimigo, algo próprio a situações de guerra.

Quem é o inimigo quando estamos falando das tensões presentes nos combates da sociedade civil? Quem é o inimigo quando é questão de desapropriações de famílias miseráveis e jovens que ocupam as ruas para protestar contra a ausência de prioridade social dos governos?

Mas como se não bastasse um certo "problema de concepção" na estrutura de segurança interna brasileira, ainda somos obrigados a aceitar algo mais intolerável. No Brasil, não é evidente conseguir distinguir polícia e bandido, dado o comportamento criminoso de vários "agentes da ordem", como ficou mais uma vez evidente com o caso Amarildo. No entanto, nada disso parece tirar o sono de nossos governadores.

Mas é interessante perceber como, desta vez, algo diferente ocorreu. Há algumas semanas, Peter Pelbart lembrou, nesta Folha, como um verdadeiro acontecimento exige compreender como pessoas se transformam. Ele lembrava uma frase inspirada de Deleuze, que reclamava daqueles que falam muito sobre revoluções, mas esquecem de tentar compreender o devir revolucionário das pessoas.

Pois desta vez a população mostrou sua indignação concreta diante do que parece ser mais uma manifestação da brutalidade criminosa da polícia contra as classes sociais mais vulneráveis. Esta solidariedade é nova e mostra como estamos diante de uma transformação real.

Nessa sociedade em transformação, não há mais lugar para a Polícia Militar.


Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo).

Comentários

  1. Lá vem o comunistinha comentar.
    Não sei porque, mas lendo esses textos me lembrei de uma frase do grande Mujica sobre o capitalismo e sua conjuntura econômica atual. Ele diz, não sei se com essas palavras, que nossa sociedade só vai mudar quando ela sofrer um "choque de valores". Desse modo, me parece que não é mais questão de defender um socialismo "primitivo", e sim de refletirmos sobre os valores que estão sendo cuspidos em nossas fuças. Nesse contexto, só peço uma coisa: mais afeto e menos polícia por favor!

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  2. Mujica, com seu famoso "Vengo del Sur" na ONU e nos fóruns mundiais.
    Traz a história da América Latina, que parece ser um povo para a maioria dos brasileiros muito distante, muito distinto. Dentre uma gama de escritores Uruguaios que valem a pena ler e fazer por eles uma América Latina pelo "choque dos afetos" - Angel Rama ( escreveu Cidade das Letras, traduzido pelo excepcional Emir Sader);
    Eduardo Galeano ( Autor do aclamado, "Veias Abertas da América Latina".); e incluiria um literato, pianista e contista, maravilhoso, chamado Felisberto Hernandez.

    Aqui por nossas veias o discurso que grita e pusla é "Vengo del Sur" e o vento que me traz é o mais forte de toda a história, pois trago sangue latino e humano!

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