Escrita e História - a capacidade de produzir texto é o que mais distingue o homem dos outros animais

“O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados”.
[Bakhtin, 1929, p.16]


Gêmeas: história e língua. Nasceram juntas, mas uma em cada instante, cada uma descobriu o sopro e a respiração em seu respectivo tempo, porém em tempos próximos, em tempos também gêmeos. A ponto de tornar-se claro que não há história sem língua, como não há texto (escrito ou oral) sem contexto, signo ideológico sem território preciso ou, interação verbal sem grupo socialmente organizado.
Contudo, em meio à história e à língua, o único ser que vive em diálogo com ambas é o ser humano. Aristóteles foi mais além, dizendo: “Único entre todos os animais, o homem possui a palavra” (Aristóteles, no Livro I da Política). Mesmo que a invenção do alfabeto tenha sido e continua sendo uma das maiores criações da humanidade, não é o alfabeto que simplesmente coloca o homem como único; mas, sim, a posse da palavra (interativa, ideológica, valorativa e sígnica), pois antes da normatização do registro o homem já se manifestava de maneira ímpar no mundo (já havia, antes do alfabeto ou mesmo da escrita, variadas manifestações de língua, distintivos grupos sociais e disputas ideológicas pelo valor dos signos). Entretanto, não se nega que a invenção da escrita surgiu para afirmar a posição de destaque do Homo sapiens-sapiens na escala evolutiva dentre os seres vivos. Podendo o ser humano, então, ver-se capaz de produzir história, registrar memórias, construir heranças, erguer sociedades heterogêneas em regiões (a)diversas com apenas uma centelha triboluminescente: o signo.
No topo da escala evolutiva, o homem, segue criando as duas irmãs gêmeas - história e língua - muitas vezes confundidas, porém sempre distintas e complementares. Pois ao longo dos caminhos da humanidade (con)fundiu-se as duas a uma unidade – em torno de um logos europeu ocidental – porém, são elas distintas e complementares como o Eu e o Outro em cada diálogo; como Aricoute e Tamendonare na mitologia Tupi, que cooperam entre si, contudo são (des)semelhantes e desunidos; como Sol e Lua, na mitologia ameríndia, são alteridades ímpares e indispensáveis uma para a outra.

Como os gêmeos Tupis, os ‘gêmeos’ craôs se opõem continuamente. O mesmo pode ser observado em muitos outros mitos ameríndios, em que dois personagens ‘candidatos à união’, como diz Lévi-Strauss, são, ao contrário, reiteradamente afastados. O pensamento ameríndio se recusa a emparelhá-los, e é a oposição, o afastamento, a diferença, o fundamento de tudo o que fazem e, conseqüentemente, do mundo em que vivem os humanos[...] A terra onde vivem os humanos, intermediária, resulta do choque entre os dois: o do alto, do céu, empurrava para baixo, enquanto o de baixo, subterrâneo, empurrava para cima. Por isso o patamar humano, as valências se invertem: as montanhas são ligadas ao ‘de baixo’,e a bacia fluvial onde vivem os matsiguengas, ao ‘de cima’. O jogo entre esses princípios fez o mundo, e continua a movê-lo. (Perrone-Moisés, 2006, p.249)

História e língua apareceram também na mitologia como um constructo das relações humanas, em suas formas de ciência, tecnologia, política e linguagem, em seus modos mais subjetivos de construir humanidade. São irmãs na arte de construir heterogeneidade e pluralidade a cada espaço e tempo que habitam, deixam traços tangíveis de sua temporalidade específica e irrepetibilidade cronotópica a cada acontecimento, enunciação ou interação. Ao mergulhar na filosofia e nas teorias da linguagem, encontramo-nos com uma reciprocidade histórica entre as duas irmãs gêmeas nascidas de uma mãe de fértil temporalidade[1]: a humanidade nascida com o homo-sapiens.
O acontecimento inaugural da escrita causou um impacto primevo e eterno no humano do homem. Depois dos primeiros escritos o homem dificilmente voltaria ser apenas homo-erectus, pois ao longo do tempo veio desconstruindo-se até as modernas formas sapiens economicus, sapiens sapiens e a contemporânea denominação homo sapiens-demens do filósofo Edgar Morin (1997).
[1] Interessante pensar que a cada acontecimento, fato, ou invenção histórica o tempo e o contexto social se movimentem com uma temporalidade nova. O impacto do acontecimento da escrita na história da humanidade abriu outras margens para a própria história. Chegando a modalizar as temporalidades de cada um de seus descendentes humanos. Naquele instante histórico o tempo abriu-se para uma nova temporalidade humana de imensa capacidade produtiva. “A questão da história é encontrar o modo de impacto do presente sobre a temporalidade humana. O acontecimento é o que produz, numa ordem específica, uma temporalidade própria. Constitui um presente, um passado e um futuro. Ou seja, o acontecimento não se dá no tempo, ele constitui uma temporalidade pela qual ele significa” ( Eduardo Guimarães, 2004, p.12).

 Fabrício César

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